PROPOSTA
DE LEITURA FRUIÇÃO
"Os alunos não
gostam de ler..."
"Eles não têm
tempo para leitura..."
Hummm... e o que nós, professores de Língua
Portuguesa, fazemos diante de tais afirmações? Quais são as medidas que tomamos
para mudar este quadro? Continuamos com as mesmas atividades de leitura (muitas
vezes chatas e entediantes, do ponto de vista dos alunos - e, admitamos, do
nosso ponto de vista também!!!) que mais afastam do que aproximam os alunos do
mundo da leitura.
Na tentativa de encontrar um jeitinho
diferente de instigar a leitura, de despertar no aluno o desejo de ler (e ler
sempre mais), elaborei uma proposta de leitura de texto como fruição, isto é, o
puro prazer de ler, sem questões de aferição de leitura, sem questões
gramaticais... é simplesmente a história pela história. O que proponho é uma
maneira diferente de abordar e ler contos de mistério de Lygia
Fagundes Telles. Este trabalho foi apresentado à disciplina de Prática de
Ensino, no Curso de Letras da Unioeste, campus de Marechal Cândido Rondon, no ano passado
(2013), quando cursava o último ano da graduação.
Bom, vamos logo à
proposta, que apresento abaixo em forma de plano de aula, para facilitar a
compreensão!
APROVEITEM!!!
PROJETO “MISTÉRIO: Venha ver, à luz da lua, as formigas do jardim selvagem na
noite de Natal”
Docente
proponente: Fernanda Maria Müller Gehring
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Participantes:
2º ano do Ensino Médio – aproximadamente 25 alunos
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Tema:
Contos de mistério de Lygia Fagundes Telles
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Hora/aula:
aprox.10 horas/aula
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Objetivo
Geral:
Instigar no aluno o gosto pela leitura.
Objetivos
Específicos:
- Ouvir o conto “O dedo”, de Lygia Fagundes
Telles;
- Assistir ao vídeo do conto “A medalha”,
de Lygia Fagundes Telles;
- Participar de gincana envolvendo os
contos;
- Ler os contos de mistérios de Lygia
Fagundes Telles: “Venha ver o pôr-do-sol”, “As formigas”, “O jardim
selvagem”, “Lua Crescente em Amsterdã” e “Natal na barca”;
- Interpretar, através de teatro ou leitura
dramatizada, os contos lidos.
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Conteúdos:
Contos de mistérios de Lygia Fagundes
Telles: “O dedo”, “A medalha”, “Venha ver o pôr-do-sol”, “As formigas”, “O
jardim selvagem”, “Lua Crescente em Amsterdã” e “Natal na barca”;
Fundamentação
teórica:
Para muitos alunos, a leitura serve apenas
para responder às questões postas sobre determinado texto e, por isso, muitos
alunos leem somente nestes momentos, por considerarem a leitura uma atividade
chata. De acordo com Suassuna (1995, p. 51, grifos da autora),
A leitura,
conforme vem sendo encaminhada na escola, não cumpre suas mais fundamentais
funções. Nem mesmo a lúdica, posto que a litura imposta, “para nota”, com
objetivos previamente traçados mata qualquer tipo de prazer que o
desvelamento do texto escrito pudesse causar.
Ainda conforme a autora, “Se o aluno lê sem
prazer, sem o exercício da crítica, sem imaginação; se ele lê e não faz disso
uma descoberta ou um ato de conhecimento; [...] não há nisso nada que lhe
possibilite uma intervenção sobre aquilo que historicamente está posto”.
Existem diversas possibilidades de
utilização do texto e, por consequência, da leitura. Geraldi (2003) apresenta
quatro “tipos” de relações entre o texto e o leitor: a primeira é o que se
pode chamar de “leitura-busca-de-informações”
(GERALDI, 2003, p. 171), quando o leitor vai ao texto para perguntar-lhe algo,
ou seja, quando está com alguma dúvida e busca soluções; a segunda é a que os
alunos estão acostumados a fazer e, como dito, é um dos únicos momentos de
leitura destes – a “leitura-estudo-do-texto”(idem,
p. 172), na qual o leitor vai ao texto para escutá-lo, para retirar dele tudo
o que ele puder fornecer; a terceira relação é aquela em que o leitor busca
um texto para “usá-lo na produção
de outras obras, inclusive outros textos” (idem, p. 173, grifo do autor),
chamada “leitura-pretexto”(idem,
ibidem); e, por fim, a “leitura-fruição”
(idem, p. 174), na qual o leitor vai ao texto sem perguntas e sem
pretender utilizá-lo, é ler pelo prazer de ler.
A leitura-fruição é apresentada por Riolfi
(2008, p. 50) nestas palavras:
Tipo de
leitura cujo cerne é o prazer, é obtida não apenas com textos literários,
como tendemos a acreditar, mas em qualquer tipo de relação em que a leitura
se mostre um fim em si e não esteja veiculada a nenhuma demanda externa, como
a obrigatoriedade de preencher uma ficha de leitura ou realizar um resumo.
É sobre este foco, o da leitura-fruição,
que se propõe o presente trabalho, cujo principal objetivo é dar (ou, em
alguns casos, devolver) o prazer da leitura, através de dinâmicas
diferenciadas, pois como afirma Suassuna (1995, p. 150) “cabe à escola e aos
professores resgatar o prazer de ler, estendendo tal ação para além das
atividades escolares”.
A autora, citando outros teóricos, assume
ainda alguns princípios ante a leitura, dos quais destacam-se: “a ocorrência
da leitura está ligada a uma série de estratégias e habilidades linguísticas
e não-linguísticas” (ORLANDI; GUIMARÃES, 1985; PALMA, 1984; DASCAL, 1978 apud
SUASSUNA, 1995, p. 149); “o professor tem um importante papel a desempenhar no processo de leitura, seja como
leitor, seja como orientador da leitura
do aluno” (KLEIMAN, 1984; GERALDI, 1985; ORLANDI; GUIMARÃES, 1985 apud
SUASSUNA, 1995, p. 150, grifos meus).
Na mesma direção, Riolfi (2008) destaca que
o professor de Língua Portuguesa deve estar sempre inovando em sua prática
pedagógica. Tais inovações também devem dizer respeito ao modo como este
intervém na “produção” de alunos leitores. A prática da leitura em sala de
aula deve incentivar os alunos a praticá-la também fora de sala; para que
isto aconteça, é necessário que o professor instigue seus alunos a lerem
“livros na sala de aula que permitam uma leitura ao mesmo tempo delirante e
qualitativa” (RIOLFI, 2008, p. 78), não necessariamente os best sellers, mas algo diferente, que
chame o aluno à leitura. Esta é, na opinião de Riolfi, uma possível forma
constituir um leitor.
De acordo com a autora, a literatura não
ocupa um lugar na escola, por isso seu capítulo é intitulado O “lugar nenhum” da literatura nas aulas
de Língua Portuguesa, e então sugere que o professor é quem deve “marcar”
este lugar, trazendo a conhecimento do aluno livros mais interessantes, mesmo
que isto demande muito empenho; é o trabalho de mostrar o diferente ao aluno
e fazê-lo acreditar que a literatura não são as histórias chatas, com
personagens mais chatos ainda que querem sempre, ao final da história,
mostrar uma moral, dizendo o que deve ou não ser feito.
Ao contrário, o texto deve ser apresentado
ao aluno sem a missão utilitarista de mostrar como é que são as coisas na
vida, ou seja, deve tocar a alma do leitor, muito além da função didática:
“Para quem é sensível, é no corpo que a palavra em delírio, qual bactéria,
encontra sua morada” (RIOLFI, 2008, p. 81).
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Encaminhamentos
Metodológicos:
1ª e
2ª aula:
1º
momento: a professora apresentará, neste primeiro momento, o projeto de
contos aos alunos. Ela dirá que serão trabalhados alguns contos da autora
Lygia Fagundes Telles, cuja temática eles mesmos perceberão. A professora
escreverá o título do projeto no quadro, MISTÉRIO:
Venha ver, à luz da lua, as formigas do jardim selvagem na noite de Natal,
e os alunos deverão copiar no caderno para que depois façam uma relação entre
este e os títulos dos contos. Depois desta breve introdução do projeto, a
professora fará a leitura dramatizada do conto “O dedo” (ANEXO A), de Lygia
Fagundes Telles para que os alunos tenham um primeiro contato com o a
temática (mistério) e, para alguns, com o gênero.
2º
momento: na sequência, dar-se-á a apresentação do conto “A medalha”
(ANEXO B), através do vídeo do Youtube;
3º
momento: para finalizar, a professora explicará que, na próxima aula,
acontecerá uma gincana que envolverá outros contos de Lygia Fagundes Telles.
Para isso, neste momento os alunos deverão formar cinco grupos com cinco
integrantes cada, para que na próxima aula os grupos já estejam formados.
3ª e
4ª aula:
A
gincana: na tentativa de fazer com que os alunos se interessem e leiam os
contos sugeridos, a atividade que se propõe é uma gincana na qual cada grupo
deverá montar um conto de Lygia Fagundes Telles. Serão trabalhados os contos
“Venha ver o pôr-do-sol”, “As formigas”, “O jardim selvagem”, “Lua Crescente
em Amsterdã” e “Natal na barca” (ANEXO C). Os contos estarão divididos em
cinco partes e espalhados pelo colégio, em envelopes enumerados com números
de 1 a 5, os números dos grupos. No final de cada trecho, haverá a pista para
encontrar o próximo trecho. Vale destacar que os trechos não estarão em ordem
e que, por isso, ao encontrarem os cinco “pedaços” os alunos deverão montar
os contos. Também é importante destacar aos alunos que cada grupo só deverá
abrir os envelopes que correspondem à sua equipe, não devendo mexer ou trocar
de lugar os envelopes dos colegas. No decorrer da gincana, mais precisamente
no segundo trecho, haverá uma surpresa, como poderá ser observado na gincana,
propriamente descrita no anexo (ANEXO D).
1º
momento: no início da aula, a professora escreverá no quadro o nome da
gincana, Gincana Misteriosa. Na
sequência, a professora dará as instruções da mesma, dizendo que cada grupo será
responsável por montar um conto; para isso, cada grupo deverá ler o primeiro
trecho, que lhes será entregue na sala, e seguir as pistas para encontrar os
próximos quatro trechos. Cada trecho deverá ser lido pelo grupo todo antes de
procurar pelo próximo. Ao final, quando encontrarem os cinco trechos, os
alunos deverão montar o conto na sala de aula, local em que estará escondido
o último trecho. Será vencedor da gincana o grupo que primeiro montar
corretamente o conto que será corrigido pela professora. Os grupos não
tomarão conhecimento dos contos dos colegas neste momento.
2º
momento: o restante da aula será destinado à realização da gincana. Mesmo
sabendo que tal atividade causará um certo alvoroço, a professora solicitará
que os alunos façam o menor barulho possível.
5ª e
6ª aula:
1º
momento: os mesmos grupos da gincana deverão reunir-se e cada aluno
receberá seu conto impresso, para poder acompanhar melhor a atividade que
segue.
2º
momento: será dito aos alunos que eles deverão apresentar seu conto aos
colegas, cada grupo de uma maneira diferente, isto é, cada um dos grupos fará
a leitura dramatizada do conto que montou na gincana, sendo que cada grupo
terá uma estratégia para a apresentação que lhes será posta da seguinte
forma:
Narrador
1(no início do conto): “O jovem casal
parou diante do jardim e ali ficou sem palavra ou gesto, apenas olhando. A noite cálida, sem vento. Uma
menina loura surgiu na alameda de areia branco-azulada e veio
correndo. Ficou a uma certa distância dos forasteiros, observando-os com
curiosidade enquanto comia a fatia de bolo que tirou do bolso do avental.”
Final
do conto:
Rapaz:
“- Sopra o vento e a gente vira outra coisa.”
Moça:
“- Que coisa?”
Rapaz:
“- Sei lá. Não quero é voltar a ser
gente, eu teria que conviver com as pessoas e as pessoas - ele
murmurou. - Queria ser um passarinho, vi um dia um passarinho bem de perto e
achei que devia ser simples a vida de um passarinho de penas azuis, os
olhinhos lustrosos. Acho que queria ser aquele passarinho.”
Moça:
“- Nunca me teria como companheira, nunca. Gosto de mel, acho que quero
ser borboleta. É fácil a vida de borboleta?”
Rapaz:
“É curta.”
Narrador
2 (no final do conto): “O vento
soprou tão forte que a menina loura teve que parar porque o avental
lhe tapou a cara. Segurou o avental, arrumou a fatia de bolo dentro do guardanapo e olhou em redor. Aproximou-se do
banco vazio. Procurou por entre as árvores, voltou até o banco e alongou o
olhar meio desapontado pela alameda também deserta. Ficou esfregando
as solas dos sapatos na areia fina. Guardou
o bolo no bolso e agachou-se para ver o passarinho de penas azuis bicando com
disciplinada voracidade a borboleta que procurava se esconder debaixo
do banco de pedra.”
2º
momento: as orientações acima serão transmitidas a cada grupo em
particular, sem que um grupo saiba a estratégia de apresentação do outro. É
importante que os alunos não digam o nome do conto que apresentarão nem no
dia da apresentação, pois os colegas terão de adivinhar qual é o conto. A
professora deverá auxiliar os grupos no que for necessário para a
apresentação dos contos. O maior objetivo é que as apresentações sejam feitas
de tal modo que incitem nos alunos a vontade de ler estes e outros contos,
misteriosos ou não. O restante da aula, bem como o tempo das próximas duas
aulas, será destinado à preparação das apresentações.
7ª e
8ª aula:
Preparação e ensaio das apresentações.
9ª e
10ª aula:
Nestas aulas, serão apresentados os contos.
É importante que a professora escreva novamente no quadro o título do projeto
e também os títulos dos contos, aleatoriamente. Na medida em que os contos
forem apresentados, os colegas deverão dizer de qual conto se trata a
apresentação. No final, os alunos perceberão (ou deverão perceber) que o
título do projeto é uma junção dos títulos dos contos.
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Avaliação:
Será avaliada a participação dos alunos na
gincana e nos teatros e leituras dramatizadas.
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Referências
bibliográficas:
GERALDI, João Wanderley. Portos de
passagem. 4 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
RIOLFI, Claudia. Ensino de Língua
Portuguesa. São Paulo: Thomson Learning, 2008.
SUASSUNA, Lívia. Ensino de Língua Portuguesa: Uma
abordagem pragmática. Campinas, SP: Papirus, 1995.
TELLES, Lygia
Fagundes. Mistérios. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1981.
http://www.e-biografias.net/lygia_fagundes_telles/
(biografia Lygia)
Anexos:
ANEXO A: Conto “O
dedo”, de Lygia Fagundes Telles;
ANEXO B: Conto “A
medalha”, de Lygia Fagundes Telles;
ANEXO
C: Contos: “Venha ver o pôr-do-sol”, “As formigas”, “O jardim selvagem”,
“Lua Crescente em Amsterdã” e “Natal na barca” de Lygia Fagundes Telles;
ANEXO
D: Contos “recortados” e com instruções para a gincana.
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ANEXO A
Conto “ O Dedo” em: TELLES, Lygia Fagundes. Mistérios. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981.
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ANEXO B
Conto “A Medalha” Disponível
em: https://www.youtube.com/watch?v=XyIRQJgY3a8
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ANEXO C
“VENHA VER O PÔR DO SOL”
Lygia Fagundes Telles
Ela subiu sem pressa a tortuosa ladeira. À
medida que avançava, as casas iam rareando, modestas casas espalhadas sem
simetria e ilhadas em terrenos baldios. No meio da rua sem calçamento,
coberta aqui e ali por um mato rasteiro, algumas crianças brincavam de roda.
A débil cantiga infantil era a única nota viva na quietude da tarde.
Ele a esperava encostado a uma árvore.
Esguio e magro, metido num largo blusão azul-marinho, cabelos crescidos e
desalinhados, tinham um jeito jovial de estudante.
- Minha querida Raquel.
Ela encarou-o, séria. E olhou para os
próprios sapatos.
- Veja que lama. Só mesmo você
inventaria um encontro num lugar destes. Que ideia, Ricardo, que ideia! Tive
que descer do taxi lá longe, jamais ele chegaria aqui em cima.
Ele sorriu entre malicioso e ingênuo.
- Jamais, não é? Pensei que viesse
vestida esportivamente e agora me aparece nessa elegância…Quando você andava
comigo, usava uns sapatões de sete-léguas, lembra?
- Foi para falar sobre isso que você
me fez subir até aqui? – perguntou ela, guardando as luvas na bolsa. Tirou um
cigarro. – Hem?!
- Ah, Raquel… – e ele tomou-a pelo
braço rindo.
- Você está uma coisa de linda. E fuma
agora uns cigarrinhos pilantras, azul e dourado…Juro que eu tinha que ver uma
vez toda essa beleza, sentir esse perfume.
- Então fiz mal?
- Podia ter escolhido um outro lugar,
não? – Abrandara a voz – E que é isso aí? Um cemitério?
Ele voltou-se para o velho muro
arruinado. Indicou com o olhar o portão de ferro, carcomido pela ferrugem.
- Cemitério abandonado, meu anjo.
Vivos e mortos, desertaram todos. Nem os fantasmas sobraram, olha aí como as
criancinhas brincam sem medo – acrescentou, lançando um olhar às crianças
rodando na sua ciranda. Ela tragou lentamente. Soprou a fumaça na cara do
companheiro. Sorriu.
– Ricardo e suas ideias. E agora? Qual
é o programa?
Brandamente ele a tomou pela cintura.
- Conheço bem tudo isso, minha gente
está enterrada aí. Vamos entrar um instante e te mostrarei o pôr do sol mais
lindo do mundo.
Perplexa, ela encarou-o um instante. E
vergou a cabeça para trás numa risada.
- Ver o pôr do sol!…Ah, meu
Deus…Fabuloso, fabuloso!…Me implora um último encontro, me atormenta dias
seguidos, me faz vir de longe para esta buraqueira, só mais uma vez, só mais
uma! E para quê? Para ver o pôr do sol num cemitério…
Ele riu também, afetando encabulamento
como um menino pilhado em falta.
- Raquel minha querida, não faça assim
comigo. Você sabe que eu gostaria era de te levar ao meu apartamento, mas
fiquei mais pobre ainda, como se isso fosse possível. Moro agora numa pensão
horrenda, a dona é uma Medusa que vive espiando pelo buraco da fechadura…
- E você acha que eu iria?
- Não se zangue, sei que não iria,
você está sendo fidelíssima. Então pensei, se pudéssemos conversar um
instante numa rua afastada…- disse ele, aproximando-se mais. Acariciou-lhe o
braço com as pontas dos dedos. Ficou sério. E aos poucos, inúmeras rugazinhas
foram se formando em redor dos seus olhos ligeiramente apertados. Os leques
de rugas se aprofundaram numa expressão astuta. Não era nesse instante tão
jovem como aparentava. Mas logo sorriu e a rede de rugas desapareceu sem
deixar vestígio. Voltou-lhe novamente o ar inexperiente e meio desatento
–Você fez bem em vir.
- Quer dizer que o programa… E não
podíamos tomar alguma coisa num bar?
- Estou sem dinheiro, meu anjo, vê se
entende.
- Mas eu pago.
- Com o dinheiro dele? Prefiro beber
formicida. Escolhi este passeio porque é de graça e muito decente, não pode
haver passeio mais decente, não concorda comigo? Até romântico.
Ela olhou em redor. Puxou o braço que
ele apertava.
- Foi um risco enorme Ricardo. Ele é
ciumentíssimo. Está farto de saber que tive meus casos. Se nos pilha juntos,
então sim, quero ver se alguma das suas fabulosas ideias vai me consertar a
vida.
- Mas me lembrei deste lugar
justamente porque não quero que você se arrisque, meu anjo. Não tem lugar
mais discreto do que um cemitério abandonado, veja, completamente abandonado
– prosseguiu ele, abrindo o portão. Os velhos gonzos gemeram. – Jamais seu
amigo ou um amigo do seu amigo saberá que estivemos aqui.
- É um risco enorme, já disse. Não
insista nessas brincadeiras, por favor. E se vem um enterro? Não suporto enterros.
- Mas enterro de quem? Raquel, Raquel,
quantas vezes preciso repetir a mesma coisa?! Há séculos ninguém mais é
enterrado aqui, acho que nem os ossos sobraram, que bobagem. Vem comigo, pode
me dar o braço, não tenha medo…
O mato rasteiro dominava tudo. E, não
satisfeito de ter se alastrado furioso pelos canteiros, subira pelas
sepulturas, infiltrando-se ávido pelos rachões dos mármores, invadira
alamedas de pedregulhos esverdinhados, como se quisesse com a sua violenta
força de vida cobrir para sempre os últimos vestígios da morte. Foram andando
vagarosamente pela longa alameda banhada de sol. Os passos de ambos ressoavam
sonoros como uma estranha música feita do som das folhas secas trituradas
sobre os pedregulhos. Amuada mas obediente, ela se deixava conduzir como uma
criança. Às vezes mostrava certa curiosidade por uma ou outra sepultura com
os pálidos medalhões de retratos esmaltados.
- É imenso, hem? E tão miserável,
nunca vi um cemitério mais miserável, é deprimente – exclamou ela atirando a
ponta do cigarro na direção de um anjinho de cabeça decepada. - Vamos embora,
Ricardo, chega.
- Ah, Raquel, olha um pouco para esta
tarde! Deprimente por quê? Não sei onde foi que eu li, a beleza não está nem
na luz da manhã nem na sombra da tarde, está no crepúsculo, nesse meio-tom,
nessa ambiguidade. Estou lhe dando um crepúsculo numa bandeja e você se
queixa.
- Não gosto de cemitério, já disse. E
ainda mais cemitério pobre.
Delicadamente ele beijou-lhe a mão.
- Você prometeu dar um fim de tarde a
este seu escravo.
- É, mas fiz mal. Pode ser muito
engraçado, mas não quero me arriscar mais.
- Ele é tão rico assim?
- Riquíssimo. Vai me levar agora numa
viagem fabulosa até o Oriente. Já ouviu falar no Oriente? Vamos até o
Oriente, meu caro…
Ele apanhou um pedregulho e fechou-o
na mão. A pequenina rede de rugas voltou a se estender em redor dos seus
olhos. A fisionomia, tão aberta e lisa, repentinamente escureceu,
envelhecida. Mas logo o sorriso reapareceu e as rugazinhas sumiram.
- Eu também te levei um dia para passear
de barco, lembra?
Recostando a cabeça no ombro do homem,
ela retardou o passo.
- Sabe Ricardo, acho que você é mesmo
tantã…Mas, apesar de tudo, tenho às vezes saudade daquele tempo. Que ano
aquele! Palavra que, quando penso, não entendo até hoje como aguentei tanto,
imagine um ano.
- É que você tinha lido A dama das Camélias, ficou assim toda
frágil, toda sentimental. E agora? Que romance você está lendo agora. Hem?
- Nenhum – respondeu ela, franzindo os
lábios. Deteve-se para ler a inscrição de uma laje despedaçada: – A minha querida esposa, eternas saudades
– leu em voz baixa.
Fez um muxoxo.- Pois sim. Durou pouco
essa eternidade.
Ele atirou o pedregulho num canteiro
ressequido.
- Mas é esse abandono na morte que faz
o encanto disto. Não se encontra mais a menor intervenção dos vivos, a
estúpida intervenção dos vivos. Veja- disse, apontando uma sepultura fendida,
a erva daninha brotando insólita de dentro da fenda -, o musgo já cobriu o
nome na pedra. Por cima do musgo, ainda virão as raízes, depois as
folhas…Esta a morte perfeita, nem lembrança, nem saudade, nem o nome sequer.
Nem isso.
Ela aconchegou-se mais a ele. Bocejou.
- Está bem, mas agora vamos embora que
já me diverti muito, faz tempo que não me divirto tanto, só mesmo um cara
como você podia me fazer divertir assim – Deu-lhe um rápido beijo na face. –
Chega Ricardo, quero ir embora.
- Mais alguns passos…
- Mas este cemitério não acaba mais,
já andamos quilômetros! – Olhou para trás. – Nunca andei tanto, Ricardo, vou
ficar exausta.
- A boa vida te deixou preguiçosa. Que
feio – lamentou ele, impelindo-a para frente. – Dobrando esta alameda, fica o
jazigo da minha gente, é de lá que se vê o pôr do sol. – E, tomando-a pela
cintura: – Sabe, Raquel, andei muitas vezes por aqui de mãos dadas com minha
prima. Tínhamos então doze anos. Todos os domingos minha mãe vinha trazer
flores e arrumar nossa capelinha onde já estava enterrado meu pai. Eu e minha
priminha vínhamos com ela e ficávamos por aí, de mãos dadas, fazendo tantos
planos. Agora as duas estão mortas.
- Sua prima também?
- Também. Morreu quando completou
quinze anos. Não era propriamente bonita, mas tinha uns olhos…Eram assim
verdes como os seus, parecidos com os seus. Extraordinário, Raquel,
extraordinário como vocês duas…Penso agora que toda a beleza dela residia
apenas nos olhos, assim meio oblíquos, como os seus.
- Vocês se amaram?
- Ela me amou. Foi a única criatura
que…- Fez um gesto. – Enfim não tem importância.
Raquel tirou-lhe o cigarro, tragou e
depois devolveu-o.
- Eu gostei de você, Ricardo.
- E eu te amei. E te amo ainda.
Percebe agora a diferença?
Um pássaro rompeu o cipreste e soltou
um grito. Ela estremeceu.
- Esfriou, não? Vamos embora.
- Já chegamos, meu anjo. Aqui estão
meus mortos.
Pararam diante de uma capelinha
coberta de alto a baixo por uma trepadeira selvagem, que a envolvia num
furioso abraço de cipós e folhas. A estreita porta rangeu quando ele a abriu
de par em par. A luz invadiu um cubículo de paredes enegrecidas, cheias de
estrias de antigas goteiras. No centro do cubículo, um altar meio
desmantelado, coberto por uma toalha que adquirira a cor do tempo. Dois vasos
de desbotada opalina ladeavam um tosco crucifixo de madeira. Entre os braços
da cruz, uma aranha tecera dois triângulos de teias já rompidas, pendendo como
farrapos de um manto que alguém colocara sobre os ombros do Cristo. Na parede
lateral, à direita da porta, uma portinhola de ferro dando acesso para uma
escada de pedra, descendo em caracol para a catacumba.
Ela entrou na ponta dos pés, evitando
roçar mesmo de leve naqueles restos da capelinha.
- Que triste é isto, Ricardo. Nunca
mais você esteve aqui?
Ele tocou na face da imagem recoberta
de poeira. Sorriu melancólico.
- Sei que você gostaria de encontrar
tudo limpinho, flores nos vasos, velas, sinais da minha dedicação, certo?
- Mas já disse que o que eu mais amo
neste cemitério é precisamente esse abandono, esta solidão. As pontes com o
outro mundo foram cortadas e aqui a morte se isolou total. Absoluta.
Ela adiantou-se e espiou através das
enferrujadas barras de ferro da portinhola. Na semi-obscuridade do subsolo,
os gavetões se estendiam ao longo das quatro paredes que formavam um estreito
retângulo cinzento.
- E lá embaixo?
- Pois lá estão as gavetas. E, nas
gavetas, minhas raízes. Pó, meu anjo, pó- murmurou ele. Abriu a portinhola e
desceu a escada. Aproximou-se de uma gaveta no centro da parede, segurando
firme na alça de bronze, como se fosse puxá-la. – A cômoda de pedra. Não é
grandiosa?
Detendo-se no topo da escada, ela
inclinou-se mais para ver melhor.
- Todas estas gavetas estão cheias?
- Cheias?…- Sorriu.- Só as que tem o
retrato e a inscrição, está vendo? Nesta está o retrato da minha mãe, aqui
ficou minha mãe- prosseguiu ele, tocando com as pontas dos dedos num medalhão
esmaltado, embutido no centro da gaveta.
Ela cruzou os braços. Falou baixinho,
um ligeiro tremor na voz.
- Vamos, Ricardo, vamos.
- Você está com medo?
- Claro que não, estou é com frio.
Suba e vamos embora, estou com frio!
Ele não respondeu. Adiantara-se até um
dos gavetões na parede oposta e acendeu um fósforo. Inclinou-se para o
medalhão frouxamente iluminado:
- A priminha Maria Emília. Lembro-me
até do dia em que tirou esse retrato. Foi umas duas semanas antes de morrer…
Prendeu os cabelos com uma fita azul e vejo-a se exibir, estou bonita? Estou
bonita?…- Falava agora consigo mesmo, doce e gravemente.- Não, não é que
fosse bonita, mas os olhos…Venha ver, Raquel, é impressionante como tinha
olhos iguais aos seus.
Ela desceu a escada, encolhendo-se
para não esbarrar em nada.
- Que frio que faz aqui. E que escuro,
não estou enxergando…
Acendendo outro fósforo, ele
ofereceu-o à companheira.
- Pegue, dá para ver muito bem…-
Afastou-se para o lado.- Repare nos olhos.
- Mas estão tão desbotados, mal se vê
que é uma moça…- Antes da chama se apagar, aproximou-a da inscrição feita na
pedra. Leu em voz alta, lentamente.- Maria Emília, nascida em vinte de maio
de mil oitocentos e falecida…- Deixou cair o palito e ficou um instante
imóvel – Mas esta não podia ser sua namorada, morreu há mais de cem anos! Seu
menti…
Um baque metálico decepou-lhe a
palavra pelo meio. Olhou em redor. A peça estava deserta. Voltou o olhar para
a escada. No topo, Ricardo a observava por detrás da portinhola fechada.
Tinha seu sorriso meio inocente, meio malicioso.
- Isto nunca foi o jazigo da sua
família, seu mentiroso? Brincadeira mais cretina! – exclamou ela, subindo
rapidamente a escada. – Não tem graça nenhuma, ouviu?
Ele esperou que ela chegasse quase a
tocar o trinco da portinhola de ferro. Então deu uma volta à chave,
arrancou-a da fechadura e saltou para trás.
- Ricardo, abre isto imediatamente!
Vamos, imediatamente! – ordenou, torcendo o trinco.- Detesto esse tipo de
brincadeira, você sabe disso. Seu idiota! É no que dá seguir a cabeça de um
idiota desses. Brincadeira mais estúpida.
- Uma réstia de sol vai entrar pela
frincha da porta, tem uma frincha na porta. Depois, vai se afastando
devagarinho, bem devagarinho. Você terá o pôr do sol mais belo do mundo.
Ela sacudia a portinhola.
- Ricardo, chega, já disse! Chega!
Abre imediatamente, imediatamente!- Sacudiu a portinhola com mais força
ainda, agarrou-se a ela, dependurando-se por entre as grades. Ficou ofegante,
os olhos cheios de lágrimas. Ensaiou um sorriso. – Ouça, meu bem, foi
engraçadíssimo, mas agora preciso ir mesmo, vamos, abra…
Ele já não sorria. Estava sério, os
olhos diminuídos. Em redor deles, reapareceram as rugazinhas abertas em
leque.
- Boa noite, Raquel.
- Chega, Ricardo! Você vai me pagar!…
– gritou ela, estendendo os braços por entre as grades, tentando agarrá-lo.-
Cretino! Me dá a chave desta porcaria, vamos!- exigiu, examinando a fechadura
nova em folha. Examinou em seguida as grades cobertas por uma crosta de
ferrugem. Imobilizou-se. Foi erguendo o olhar até a chave que ele balançava
pela argola, como um pêndulo. Encarou-o, apertando contra a grade a face sem
cor. Esbugalhou os olhos num espasmo e amoleceu o corpo. Foi escorregando.
- Não, não…
Voltado ainda para ela, ele chegara
até a porta e abriu os braços. Foi puxando as duas folhas escancaradas.
- Boa noite, meu anjo.
Os lábios dela se pregavam um ao
outro, como se entre eles houvesse cola. Os olhos rodavam pesadamente numa
expressão embrutecida.
- Não…
Guardando a chave no bolso, ele
retomou o caminho percorrido. No breve silêncio, o som dos pedregulhos se
entrechocando úmidos sob seus sapatos. E, de repente, o grito medonho,
inumano:
- NÃO!
Durante algum tempo ele ainda ouviu os
gritos que se multiplicaram, semelhantes aos de um animal sendo estraçalhado.
Depois, os uivos foram ficando mais remotos, abafados como se viessem das
profundezas da terra. Assim que atingiu o portão do cemitério, ele lançou ao
poente um olhar mortiço. Ficou atento. Nenhum ouvido humano escutaria agora
qualquer chamado. Acendeu um cigarro e foi descendo a ladeira. Crianças ao
longe brincavam de roda.
|
“AS FORMIGAS”
Lygia Fagundes Telles
Quando
minha prima e eu descemos do táxi já era quase noite. Ficamos imóveis
diante do velho sobrado de janelas ovaladas, iguais a dois olhos tristes, um
deles vazado por uma pedrada. Descansei a mala no chão e apertei o braço da
prima.
- É sinistro.
Ela
me impeliu na direção da porta. Tínhamos outra escolha? Nenhuma pensão
nas redondezas oferecia um preço melhor a duas pobres estudantes, com
liberdade de usar o fogareiro no quarto, a dona nos avisara por telefone que
podíamos fazer refeições ligeiras com a condição de não provocar incêndio.
Subimos a escada velhíssima, cheirando a creolina.
- Pelo menos não vi sinal de barata –
disse minha prima.
A dona era uma velha balofa, de peruca
mais negra do que a asa da graúna. Vestia um desbotado pijama de seda
japonesa e tinha as unhas aduncas recobertas por uma crosta de esmalte
vermelho-escuro descascado nas pontas encardidas. Acendeu um charutinho.
- É você que estuda medicina? – perguntou
soprando a fumaça na minha direção.
- Estudo direito. Medicina é ela.
A
mulher nos examinou com indiferença. Devia estar pensando em outra
coisa quando soltou uma baforada tão densa que precisei desviar a cara. A
saleta era escura, atulhada de móveis velhos, desparelhados. No sofá de
palhinha furada no assento, duas almofadas que pareciam ter sido feitas com
os restos de um antigo vestido, os bordados salpicados de vidrilho.
-
Vou mostrar o quarto, fica no sótão – disse ela em meio a um acesso de
tosse. Fez um sinal para que a seguíssemos.
- O
inquilino antes de vocês também estudava medicina, tinha um caixotinho de
ossos que esqueceu aqui, estava sempre mexendo neles.
Minha prima voltou-se: – Um caixote de
ossos?
A mulher não respondeu, concentrada no
esforço de subir a estreita escada de caracol que ia dar no quarto. Acendeu a
luz. O quarto não podia ser menor, com o teto em declive tão acentuado que
nesse trecho teríamos que entrar de gatinhas. Duas camas, dois armários e uma
cadeira de palhinha pintada de dourado. No ângulo onde o teto quase se
encontrava com o assoalho, estava um caixotinho coberto com um pedaço de
plástico. Minha prima largou a mala e pondo-se de joelhos puxou o caixotinho
pela alça de corda. Levantou o plástico. Parecia fascinada.
-
Mas que ossos tão miudinhos! São de criança?
–
Ele disse que eram de adulto. De um anão.
- De um anão? É mesmo, a gente vê que já
estão formados… Mas que maravilha, é raro à beça esqueleto de anão. E tão
limpo, olha aí admirou-se ela. Trouxe na ponta dos dedos um pequeno crânio de
uma brancura de cal. – Tão perfeito, todos os dentinhos!
-
Eu ia jogar tudo no lixo, mas se você se interessa pode ficar com ele.
O banheiro é aqui ao lado, só vocês é que vão usar, tenho o meu lá embaixo.
Banho quente, extra. Telefone, também. Café das sete às nove, deixo a mesa
posta na cozinha com a garrafa térmica, fechem bem a garrafa – recomendou
coçando a cabeça. A peruca se deslocou ligeiramente. Soltou uma baforada
final: – Não deixem a porta aberta senão meu gato foge.
Ficamos
nos olhando e rindo enquanto ouvíamos o barulho dos seus chinelos de salto na
escada. E a tosse encatarrada.
Esvaziei a mala, dependurei a blusa
amarrotada num cabide que enfiei num vão da veneziana, prendi na parede, com
durex, uma gravura de Grassmann e sentei meu urso de pelúcia em cima do
travesseiro. Fiquei vendo minha prima subir na cadeira, desatarraxar a
lâmpada fraquíssima que pendia de um fio solitário no meio do teto e no lugar
atarraxar uma lâmpada de duzentas velas que tirou da sacola. O quarto ficou
mais alegre. Em compensação, agora a gente podia ver que a roupa de cama não
era tão alva assim, alva era a pequena tíbia que ela tirou de dentro do
caixotinho. Examinou-a. Tirou uma vértebra e olhou pelo buraco tão reduzido
como o aro de um anel. Guardou-as com a delicadeza com que se amontoam ovos
numa caixa.
-
Um anão. Raríssimo, entende? E acho que não falta nenhum ossinho, vou
trazer as ligaduras, quero ver se no fim da semana começo a montar ele.
Abrimos
uma lata de sardinha que comemos com pão, minha prima tinha sempre
alguma lata escondida, costumava estudar até a madrugada e depois fazia sua
ceia. Quando acabou o pão, abriu um pacote de bolacha Maria.
- De onde vem esse cheiro? – perguntei
farejando. Fui até o caixotinho, voltei, cheirei o assoalho. – Você não está
sentindo um cheiro meio ardido?
- É de bolor. A casa inteira cheira assim
– ela disse. E puxou o caixotinho para debaixo da cama.
No
sonho, um anão louro de colete xadrez e cabelo repartido no meio entrou no
quarto fumando charuto. Sentou-se na cama da minha prima, cruzou as
perninhas e ali ficou muito sério, vendo-a dormir. Eu quis gritar, tem um
anão no quarto! mas acordei antes. A luz estava acesa. Ajoelhada no chão,
ainda vestida, minha prima olhava fixamente algum ponto do assoalho.
- Que
é que você está fazendo aí? – perguntei.
- Essas formigas. Apareceram de repente,
já enturmadas. Tão decididas, está vendo?
Levantei e dei com as formigas pequenas e
ruivas que entravam em trilha espessa pela fresta debaixo da porta,
atravessavam o quarto, subiam pela parede do caixotinho de ossos e
desembocavam lá dentro, disciplinadas como um exército em marcha exemplar.
- São
milhares, nunca vi tanta formiga assim. E não tem trilha de volta, só de ida
– estranhei.
- Só de ida.
Contei-lhe meu pesadelo com o anão
sentado em sua cama.
- Está debaixo dela – disse minha prima e
puxou para fora o caixotinho.
Levantou o plástico. - Preto de formiga!
Me dá o vidro de álcool.
- Deve ter sobrado alguma coisa aí nesses
ossos e elas descobriram, formiga descobre tudo. Se eu fosse você, levava
isso lá pra fora.
- Mas os ossos estão completamente
limpos, eu já disse. Não ficou nem um fiapo de cartilagem, limpíssimos.
Queria saber o que essas bandidas vêm fuçar aqui.
Respingou
fartamente o álcool em todo o caixote. Em seguida, calçou os sapatos
e, como uma equilibrista andando no fio de arame, foi pisando firme, um pé
diante do outro na trilha de formigas. Foi e voltou duas vezes. Apagou o
cigarro. Puxou a cadeira. E ficou olhando dentro do caixotinho.
- Esquisito. Muito esquisito.
– O quê?
-
Me lembro que botei o crânio em cima da pilha, me lembro que até calcei ele
com as omoplatas para não rolar. E agora ele está aí no chão do
caixote, com uma omoplata de cada lado. Por acaso você mexeu aqui?
- Deus me livre, tenho nojo de osso!
Ainda mais de anão.
Ela
cobriu o caixotinho com o plástico, empurrou-o com o pé e levou o fogareiro
para a mesa, era a hora do seu chá. No chão, a trilha de formigas
mortas era agora uma fita escura que encolheu. Uma formiguinha que escapou da
matança passou perto do meu pé, já ia esmagá-la quando vi que levava as mãos
à cabeça, como uma pessoa desesperada. Deixei-a sumir numa fresta do
assoalho.
Voltei a sonhar aflitivamente, mas dessa
vez foi o antigo pesadelo com os exames, a professora fazendo uma pergunta
atrás da outra e eu muda diante do único ponto que não tinha estudado. Às
seis horas o despertador disparou veementemente. Travei a campainha. Minha
prima dormia com a cabeça coberta. No banheiro, olhei com atenção para as
paredes, para o chão de cimento, à procura delas. Não vi nenhuma. Voltei
pisando na ponta dos pés e então entreabri as folhas da veneziana. O cheiro
suspeito da noite tinha desaparecido. Olhei para o chão: desaparecera também
a trilha do exército massacrado. Espiei debaixo da cama e não vi o menor
movimento de formigas no caixotinho coberto.
Quando
cheguei por volta das sete da noite, minha prima já estava no quarto.
Achei-a tão abatida que carreguei no sal da omelete, tinha a pressão baixa.
Comemos num silêncio voraz. Então me lembrei.
- E as formigas?
- Até agora, nenhuma.
- Você varreu as mortas?
Ela ficou me olhando.
- Não varri nada, estava exausta. Não foi
você que varreu?
- Eu?! Quando acordei, não tinha nem
sinal de formiga nesse chão, estava certa que antes de deitar você juntou
tudo… Mas, então, quem?!
Ela apertou os olhos estrábicos, ficava
estrábica quando se preocupava.
-
Muito esquisito mesmo. Esquisitíssimo.
Fui
buscar o tablete de chocolate e perto da porta senti de novo o cheiro, mas
seria bolor? Não me parecia um cheiro assim inocente, quis chamar a
atenção da minha prima para esse aspecto, mas ela estava tão deprimida que
achei melhor ficar quieta. Espargi água-de-colônia Flor de Maçã por todo o
quarto (e se ele cheirasse como um pomar?) e fui deitar cedo. Tive o segundo
tipo de sonho, que competia nas repetições com o tal sonho da prova oral,
nele eu marcava encontro com dois namorados ao mesmo tempo. E no mesmo lugar.
Chegava o primeiro e minha aflição era levá-lo embora dali antes que chegasse
o segundo. O segundo, desta vez, era o anão. Quando só restou o oco de
silêncio e sombra, a voz da minha prima me fisgou e me trouxe para a
superfície. Abri os olhos com esforço. Ela estava sentada na beira da minha
cama, de pijama e completamente estrábica.
- Elas voltaram.
- Quem?
-
As formigas. Só atacam de noite, antes da madrugada. Estão todas aí de
novo. A trilha da véspera, intensa, fechada, seguia o antigo percurso da
porta até o caixotinho de ossos por onde subia na mesma formação até
desformigar lá dentro. Sem caminho de volta.
- E os ossos?
Ela se enrolou no cobertor, estava
tremendo.
-
Aí é que está o mistério. Aconteceu uma coisa, não entendo mais nada!
Acordei pra fazer pipi, devia ser umas três horas. Na volta, senti que no
quarto tinha algo mais, está me entendendo? Olhei pro chão e vi a fila dura
de formigas, você se lembra? Não tinha nenhuma quando chegamos. Fui ver o
caixotinho, todas se trançando lá dentro, lógico, mas não foi isso o que
quase me fez cair pra trás, tem uma coisa mais grave: é que os ossos estão
mesmo mudando de posição, eu já desconfiava mas agora estou certa, pouco a
pouco eles estão… Estão se organizando.
- Como, se organizando?
Ela ficou pensativa. Comecei a tremer de
frio, peguei uma ponta do seu cobertor. Cobri meu urso com o lençol.
-
Você lembra, o crânio entre as omoplatas, não deixei ele assim. Agora
é a coluna vertebral que já está quase formada, uma vértebra atrás da outra,
cada ossinho tomando o seu lugar, alguém do ramo está montando o esqueleto,
mais um pouco e… Venha ver!
- Credo, não quero ver nada. Estão
colando o anão, é isso?
Ficamos
olhando a trilha rapidíssima, tão apertada que nela não caberia sequer um
grão de poeira. Pulei-a com o maior cuidado quando fui esquentar o
chá. Uma formiguinha desgarrada (a mesma daquela noite?) sacudia a cabeça
entre as mãos. Comecei a rir e tanto que se o chão não estivesse ocupado,
rolaria por ali de tanto rir. Dormimos juntas na minha cama. Ela dormia ainda
quando saí para a primeira aula. No chão, nem sombra de formiga, mortas e
vivas desapareciam com a luz do dia.
Voltei tarde essa noite, um colega tinha
se casado e teve festa. Vim animada, com vontade de cantar, passei da conta.
Só na escada é que me lembrei: o anão. Minha prima arrastara a mesa para a
porta e estudava com o bule fumegando no fogareiro.
- Hoje não vou dormir, quero ficar de
vigia – ela avisou. O assoalho ainda estava limpo. Me abracei ao urso.
- Estou com medo.
Ela foi buscar uma pílula para atenuar
minha ressaca, me fez engolir a pílula com um gole de chá e ajudou a me
despir.
- Fico vigiando, pode dormir sossegada.
Por enquanto não apareceu nenhuma, não está na hora delas, é daqui a pouco
que começa. Examinei com a lupa debaixo da porta, sabe que não consigo
descobrir de onde brotam?
Tombei na cama, acho que nem respondi. No
topo da escada o anão me agarrou pelos pulsos e rodopiou comigo até o quarto,
Acorda, acorda! Demorei para reconhecer minha prima que me segurava pelos
cotovelos. Estava lívida. E vesga.
- Voltaram – ela disse.
Apertei entre as mãos a cabeça dolorida.
- Estão aí? – Ela falava num tom miúdo,
como se uma formiguinha falasse com sua voz.
-
Acabei dormindo em cima da mesa, estava exausta. Quando acordei, a
trilha já estava em plena movimentação. Então fui ver o caixotinho, aconteceu
o que eu esperava…
- O que foi? Fala depressa, o que foi?
Ela
firmou o olhar oblíquo no caixotinho debaixo da cama.
- Estão mesmo montando ele. E
rapidamente, entende? O esqueleto já está inteiro, só falta o fêmur. E os
ossinhos da mão esquerda, fazem isso num instante. Vamos embora daqui.
- Você está falando sério?
- Vamos embora, já arrumei as malas.
A mesa estava limpa e vazios os armários
escancarados.
-
Mas sair assim, de madrugada? Podemos sair assim?
- Imediatamente, melhor não esperar que a
bruxa acorde. Vamos, levanta!
- E para onde a gente vai?
- Não interessa, depois a gente vê.
Vamos, vista isto, temos que sair antes que o anão fique pronto.
Olhei de longe a trilha: nunca elas me
pareceram tão rápidas. Calcei os sapatos, descolei a gravura da parede,
enfiei o urso no bolso da japona e fomos arrastando as malas pelas escadas,
mais intenso o cheiro que vinha do quarto, deixamos a porta aberta. Foi o
gato que miou comprido ou foi um grito?
No céu, as últimas estrelas já
empalideciam. Quando encarei a casa, só a janela vazada nos via, o outro olho
era penumbra.
|
“O JARDIM SELVAGEM”
Lygia Fagundes Telles
— Daniela é assim como um jardim selvagem
— disse o tio Ed olhando para o teto. — Como um jardim selvagem…
Tia Pombinha concordou fazendo uma cara
muito esperta. E foi correndo buscar o maldito licor de cacau feito em casa.
Passei a mão na tampa da caixa de marrom-glacê que ele trouxera. Era a
segunda ou terceira vez que a presenteava com uma caixa igual, eu já sabia
que aquele nome era como o papel dourado embrulhando simples castanhas
açucaradas. Mas, e um jardim selvagem? O que era um jardim selvagem?
Foi o que lhe perguntei. Ele me olhou com
um ar de gigante da montanha falando com a formiguinha.
— Jardim selvagem é um jardim selvagem,
menina.
— Ah, bom — eu disse. E aproveitei a
entrada de tia Pombinha para fugir da sala. A tal caixa estava mesmo fechada,
tão cedo não seria aberta. E o licor de cacau era tão ruim que eu já tinha
visto uma visita guardá-lo na boca para depois cuspir. Na bacia, fingindo
lavar as mãos.
Mais tarde, quando eu já enfiava a
camisola para dormir, tia Pombinha entrou no meu quarto. Sentou-se na cama. A
caixa de doces já devia estar enfurnada em alguma gaveta. Sovina, sovina.
— O Ed casado, imagine! Até parece
mentira, o meu querido Ed casado há mais de uma semana. Mas por que não me
avisou, Cristo-Rei! Como é que ele se casa assim, sem participar… Que
loucura!
— Decerto não quis dar festa.
— Mas não seria preciso festa, eu só
gostaria de saber — choramingou, fazendo bico. — Ainda na noite passada ele
me apareceu em sonho…
— Apareceu? — perguntei metendo-me na
cama.
Os sonhos de tia Pombinha eram todos
horríveis, estava para chegar o dia em que viria anunciar que sonhara com
alguma coisa que prestasse.
— Não me lembro bem como foi, ele logo
sumiu no meio de outras pessoas. Mas o que me deixou nervosa foi ter sonhado
com dentes nessa mesma noite. Você sabe, não é nada bom sonhar com dentes.
— Tratar deles é pior ainda.
Sorriu sem vontade. Ficou toda
sentimental quando resolveu me cobrir até o pescoço.
— Você agora me lembrou o Ed menino. Fui
a mãezinha dele quando a nossa mãe morreu. E agora se casa assim de repente,
sem convidar a família, como se tivesse vergonha da gente… Mas não é mesmo
esquisito? E essa moça. Cristo-Rei? Ninguém sabe quem ela é…
— Tio Ed deve saber, ora.
Acho que ela se impressionou com minha
resposta porque sossegou um pouco. Mas logo desatou a falar de novo com
aquela fala aflita de quem vai pegar o trem, falava assim quando chegava a
hora de viajar.
— Ele parece feliz, sem dúvida, mas ao
mesmo tempo me olhou de um jeito… Era como se quisesse me dizer qualquer
coisa e não tivesse coragem, senti isso com tanta força que meu coração até
doeu, quis perguntar. O que foi, Ed! Pode me dizer o que foi? Mas ele só me
olhava e não disse nada. Tive a impressão de que estava com medo.
— Com medo de quê?
— Não sei, não sei, mas foi como se eu
estivesse vendo Ed menino outra vez. Tinha pavor do escuro, só queria dormir
de luz acesa. Papai proibiu essa história de luz e não me deixou mais ir lá
fazer companhia, achava que eu poderia estragá-lo com muito mimo. Mas uma
noite não resisti e entrei escondida no quarto. Estava acordado, sentado na
cama. Quer que eu fique aqui até você dormir? perguntei. Pode ir embora, ele
disse, já não me importo mais de ficar no escuro. Então dei-lhe um beijo,
como fiz hoje. Ele me abraçou e me olhou do mesmo jeito que me olhou agora,
querendo confessar que estava com medo. Mas sem coragem de confessar.
Disfarcei um bocejo. E afastei as
cobertas porque já estava transpirando. Quando minha tia anunciava uma
história importante, na certa vinha alguma bobagem sem importância nenhuma.
De resto, tia Pombinha tinha a mania de ver mistério em tudo, até no nosso
limoeiro que dava às vezes uns limões adocicados. Não passava um dia sem
falar nos tais pressentimentos.
— Mas por que ele tinha de ter medo?
Ela franziu a testa. Seus olhinhos
redondos ficaram mais redondos ainda.
— Aí é que está… Quem é que pode saber?
Ed sempre foi muito discreto, não é de se abrir com a gente, ele esconde. Que
moça será essa?
Lembrei-me então do que ele dissera,
Daniela é como um jardim selvagem. Quis perguntar o que era um jardim
selvagem. Mas tia Pombinha devia entender tanto quanto eu desses jardins.
— Ela é bonita, tia?
— Ed disse que é lindíssima. Mas não é
tão jovem assim, parece que tem a idade dele, quase quarenta anos…
— E não é bom? Isso de ser meio velha.
Balançou a cabeça com ar de quem podia
dizer ainda um montão de coisas sobre essa questão de idade. Mas preferia não
dizer.
— Hoje de manhã, quando você estava na
escola, a cozinheira deles passou por aqui, é amiga da Conceição. Contou que
ela se veste nos melhores costureiros, só usa perfume francês, toca piano…
Quando estiveram na chácara, nesse último fim de semana, ela tomou banho nua
debaixo da cascata.
— Nua?
— Nuinha. Vão morar na chácara, ele
mandou reformar tudo, diz que a casa ficou uma casa de cinema. E é isso que
me preocupa, Ducha. Que fortuna não estarão gastando nessas loucuras?
Cristo-Rei, que fortuna! Onde é que ele foi encontrar essa moça?
— Mas ele não é rico?
— Aí é que está… Ed não é tão rico quanto
se pensa.
Dei de ombros. Nunca tinha pensado antes
no assunto. Bocejei sem cerimônia. Tia Pombinha estava era com ciúme, havia
muito dessas confusões nas famílias, eu mesma já tinha lido um caso parecido
numa revista. Sabia até o nome do complexo, era um complexo de irmão com
irmã. Afundei a cabeça no travesseiro. Se queria tanto conversar, por que não
se lembrou de trazer os doces? Para comer tudo escondido, não é?
— Deixa, tia. Você não tem nada com isso.
Ela abriu nos joelhos as mãos ossudas, de
unhas onduladas, cortadas rente. Passei a língua na palma das minhas mãos
para umedecê-las. Sempre que olhava para as mãos dela, assim secas como se
tivessem lidado com giz, precisava molhar as minhas.
— Diz que anda sempre com uma luva na mão
direita, não tira nunca a luva dessa mão, nem dentro de casa.
Sentei-me na cama. Esse pedaço me
interessava.
— Usa uma luva?
— Na mão direita. Diz que tem dúzias de
luvas, cada qual de uma cor, combinando com o vestido.
— E não tira nem dentro de casa?
— Já amanhece com ela. Diz que teve um
acidente com essa mão, deve ter ficado algum defeito…
— Mas por que não quer que vejam?
— Eu é que sei? Como Ed nem tocou nisso,
fiquei sem jeito de perguntar, essas coisas não se perguntam. Casado,
imagine… Deve dar um marido exemplar, desde criança foi muito bonzinho, você
precisava ver que pérola de menino! Uma verdadeira pérola…
Tia Pombinha ficou falando algum tempo
ainda sobre a bondade do irmão, mas eu só pensava naquela nova tia que tomava
banho pelada debaixo da cascata, não tirava a luva da mão direita e era
comparada a um jardim.
Na manhã de sábado, quando cheguei para o
almoço, soube que ela passara em casa. Chutei minha pasta. As coisas que
valiam a pena aconteciam sempre quando eu estava na escola. Tia Pombinha
gaguejava, o pescoço fino cheio de manchas avermelhadas. Ficava assim que nem
peru quando tinha uma emoção forte.
— Ah, você não imagina como é
encantadora! Nunca vi uma beleza igual, que encanto de moça! Tão natural, tão
simples e ao mesmo tempo tão elegante, tão bem cuidada… Foi tão carinhosa
comigo!
Fiquei olhando para as pernas finas de
tia Pombinha com as meias murchas cor de cenoura. Bom, então tudo tinha
mudado.
— Quer dizer que a senhora gostou dela?
— Muito, fiquei mesmo cativada! E trouxe
presentes, venha ver — disse puxando-me pelo braço. — Três cortes de seda
finíssima para mim e para você uma boneca francesa… Loura, loura!
— Tenho ódio de boneca.
— Ducha! Você vai gostar dessa, é a coisa
mais linda que já se viu, olha aí, não é linda?
Fiquei olhando a boneca dentro da caixa.
Usava luvinhas de renda.
— Ela estava de luva?
— Estava. Uma luva verde, combinando com
os sapatos. No começo a gente estranha a luva só naquela mão. Mas não é mesmo
de se estranhar? Podia fazer uma plástica… Enfim, deve ter motivos. Um amor
de moça!
A conversa no mês seguinte com a
cozinheira de tio Ed me fez esquecer até os zeros sucessivos que tive em
matemática. A cozinheira viera indagar se Conceição sabia de um bom emprego,
desde a véspera estava desempregada. Tia Pombinha tinha ido ao mercado,
pudemos falar à vontade enquanto Conceição fazia o almoço.
— Seu tio é muito bom, coitado. Gosto
demais dele — começou ela enquanto beliscava um bolinho que Conceição tirara
da frigideira. — Mas não combino com dona Daniela. Fazer aquilo com o pobre
do cachorro, não me conformo.
— Que cachorro?
— O Kleber, lá da chácara. Um cachorro
tão engraçadinho, coitado. Só porque ficou doente e ela achou que ele estava
sofrendo… Tem cabimento fazer isso com um cachorro?
— Mas o que foi que ela fez?
— Deu um tiro nele.
— Um tiro?
— Bem na cabeça. Encostou o revólver na
orelha e pum! matou assim como se fosse uma brincadeira… Não era para ninguém
ver, nem o seu tio, que estava na cidade. Mas eu vi com estes olhos que a
terra há de comer, ela pegou o revólver com aquela mão enluvada e atirou no
pobrezinho, morreu ali mesmo, sem um gemido… Perguntei depois, Mas por que a
senhora fez isso? O bicho é de Deus, não se faz com um bicho de Deus uma
coisa dessas! Ela então respondeu que o Kleber estava sofrendo muito, que a
morte para ele era um descanso.
— Disse isso?
A mulher deu uma dentada no bolinho.
Ficou soprando um pouco porque estava quente como o diabo, eu mesma não
conseguia dar cabo do meu.
— Disse que a vida tinha que ser… Ah! não
lembro. Mas falou em música, que tudo tinha que ser como uma música, foi
isso. A doença sem remédio era o desafino, o melhor era acabar com o
instrumento pra não tocar mais desafinado. Até que foi muito educada comigo,
viu que eu estava nervosa e quis me explicar tudo direitinho. Mas podia ficar
me explicando até gastar todo o cuspe que eu nunca ia entender. O que entendi
muito bem foi que o Kleber estava morto. O pobre.
— Mas ela gostava dele?
— Acho que sim, estavam sempre juntos.
Quando ele ainda estava bom, ia tão alegrinho tomar banho com ela na cascata…
Só faltava falar, aquele cachorro.
— Ela perguntou por que você ia embora?
— Não. Não perguntou nada. Nunca me
tratou mal, justiça seja feita, sempre foi muito delicada com todos os
empregados. Mas não sei, eu me aborreci por demais… isso de matar o Kleber! E
montar em pelo como monta, feito índio, e tomar banho sem roupa… Uma noite a
mesa do jantar virou inteira. O doutor disse que foi ele que esbarrou no pé
da mesa, pra não cair, agarrou a toalha e veio tudo pro chão. Mas ninguém me
tira da cabeça que quem virou a mesa foi ela.
— Por quê? Por que fez isso?
— Quando fica brava… A gente tem vontade
até de entrar num buraco. O olho dela, o azul, muda de cor.
— Não tira a luva, nunca?
— Capaz!… Acho que nem o doutor viu
aquela mão. Já amanhece de luvinha. Até na cascata usa uma luva de borracha.
Conceição veio interromper a conversa
para mostrar à amiga uma bolsa que tinha comprado. Ficaram as duas
cochichando sobre homens. Quando tia Pombinha chegou, a mulher já estava se
despedindo, o que foi uma sorte.
Não falei com ninguém sobre essa
história. Ma levei o maior susto do mundo quando dois meses depois tia
Daniela telefonou da chácara para avisar que tio Ed estava muito doente. Tia
Pombinha começou a tremer. O pescoço ficou uma mancha só.
— Deve ser a úlcera que voltou… Meu
querido Ed! Cristo-Rei, será que é mesmo grave? Ducha, depressa, vai buscar o
calmante, quinze gotas num copo de água açucarada… Cristo-Rei! A úlcera…
Contei cinquenta. E carreguei no açúcar
para disfarçar o gosto. Antes de levar o copo, despejei ainda mais umas
gotas.
Assim que acordou, à hora do jantar,
desandou nos telefonemas avisando à velharia da irmandade que o “menino
estava doente”.
— E tia Daniela? — perguntei quando ela
parou de choramingar.
— Tem sido dedicadíssima, não sai de
perto dele um só minuto. Falei também com o médico, disse que nunca encontrou
criatura tão eficiente, tem sido uma enfermeira e tanto. É o que me deixa
mais descansada. Meu querido menino…
Quando Conceição veio me anunciar que ele
tinha se matado com um tiro, assustei-me à beça. Mas aquele primeiro susto
que levara quando me disseram que ele estava doente fora um susto maior
ainda. Eu chegava da escola quando Conceição veio correndo ao meu encontro.
— Seu tio Ed se matou hoje de manhã! Se
matou com um tiro!
Larguei a pasta.
— Um tiro no ouvido?
— Lá sei se foi no ouvido, não me
contaram mais nada, dona Pombinha parecia louca, mal podia falar. Já seguiu
com as irmãs para a chácara, foi um tamanho berreiro! Todas berravam ao mesmo
tempo, um fim de mundo!
Dessa vez achei muito bom que eu
estivesse na escola quando chegou a notícia. Conceição enxugou duas lágrimas
na barra do avental enquanto fritava batatas. Peguei uma batata que caíra da
frigideira e afundei-a no sal. Estava quase crua.
— Mas por que ele fez isso, Conceição?
— Ninguém sabe. Não deixou carta, nada, ninguém
sabe! Vai ver que foi por causa da doença, não é mesmo? Você também não acha
que foi por causa da doença?
— Acho — concordei, enquanto esperava que
caísse outra batata na frigideira.
Pensava agora em tia Daniela metida num
vestido preto. E de luva também preta, como não podia deixar de ser.
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“LUA CRESCENTE EM AMSTERDÔ
Lygia Fagundes Telles
O jovem
casal parou diante do jardim e ali ficou sem palavra ou gesto, apenas olhando. A noite cálida, sem vento. Uma
menina loura surgiu na alameda de areia branco-azulada e veio
correndo. Ficou a uma certa distância dos forasteiros, observando-os com
curiosidade enquanto comia a fatia de bolo que tirou do bolso do avental.
- Vai me dar um pedaço desse bolo? -
pediu a jovem estendendo a mão. – Me dá um pedaço, hem, menininha?
- Ela não entende - ele disse.
A jovem levou a mão até a boca.
-
Comer, comer! Estou com fome – insistiu na mímica que se acelerou, exasperada.
- Quero comer!
- Aqui é a Holanda, querida. Ninguém
entende. A menina foi se afastando de
costas. E desatou a correr pelo mesmo caminho por onde viera. Ele
adiantou-se para chamar a menina e notou então que a estreita alameda se
bifurcava em dois longos braços curvos que deviam se dar as mãos lá no fim,
abarcando o pequeno jardim redondo.
- Um abraço tão apertado - ele disse. -
Acho que este é o jardim do amor. Tinha lá em casa uma estatueta com um anjo
nu fervendo de desejo apesar do mármore,
todo inclinado para a amada seminua, chegava a enlaçá-la. Mas as bocas
estavam a um milímetro do beijo, um pouco mais que ele baixasse... A aflição
que me dava aquelas bocas entreabertas, sem poder se juntar. Sem poder se
juntar.
- Mas que língua falam em Amsterdã?
-A língua de Amsterdã - ele disse
enfiando os dedos nos bolsos da jaqueta, à
procura de cigarros. - Teríamos que morrer e renascer aqui para entender o que
falam.
-
Queria tanto aquele bolo, não sente o cheiro? Queria aquele bolo, uma migalha
que fosse e ficaria mastigando, mastigando e o bolo ia se espalhar em mim, na
mão, no cabelo, não sente o cheiro?
Ele limpou nas calças os dedos sujos da
poeira de fumo que encontrou nos bolsos.
- Vamos dormir aqui. Mas vê se pára de
chorar, quer que venha o guarda?
- Quero chorar.
- Então chora.
Molemente ela se recostou numa árvore.
Enlaçou-a. Os cabelos lhe caiam em abandono pela cara mas através dos cabelos
e da folhagem pôde ver o céu.
- Que lua magrinha. É lua minguante?
Ele avançou até o meio da alameda e expôs
a cara que se banhou na luz do céu estrelado.
- Acho que é crescente, tem o formato de
um C. Vem, querida, ali tem um banco.
- Não me chame mais de querida.
- Está bem, não chamo.
- Não somos mais queridos, não somos mais
nada.
- Está certo. Agora vem.
- O
banco é frio, quero minha cama, quero minha cama - ela soluçou e os soluços
fracamente se perderam num gemido. - Que fome. Que fome.
- Amanhã a gente...
- Quero
hoje! - ela ordenou endireitando o corpo. Voltou para ele a face endurecida.
- Se você me amasse mesmo, faria agora um ensopado com seu fígado, com
seu coração. Meus cachorros gostavam de coração de boi. Não vai me fazer um
ensopado com seu coração, não vai?
- Meu coração é de isopor e isopor não dá
nenhum ensopado. Li uma vez que - ele acrescentou. Puxou-a com brandura: -
Vem, Ana. Ali tem um banco.
- Meu coração é de verdade.
Ele riu.
- O seu?
Isopor ou acrílico, na história que li o homem achou que tinha tanto sofrimento em redor, mas tanto que não
aguentou e substituiu seu coração por um de acrílico, acho que era
acrílico.
- E daí?
Ele ficou olhando para os pés enegrecidos
da jovem, forçando as tiras das sandálias rotas. Subiu o olhar até o jeans
esfiapado, pesado de poeira.
- Daí, nada. Não deu certo, ele teria que
nascer outra coisa.
-
Você sabia contar histórias melhores.
Sob a
camiseta de algodão transparente os
pequeninos bicos dos seios pareciam friorentos. E não estava frio. Foram escurecendo durante a viagem, ele
pensou. Qual era a Ana verdadeira,
esta ou a outra? A que jurou amá-lo na terra, no mar, no braseiro, na
neve, debaixo da ponte, na cama de ouro.
- Você mentiu, Ana.
- Quando? Quando foi que menti?
Ele desviou o olhar desinteressado.
- Vem, que amanhã a gente vai ver o museu
de Rembrandt, lembra? Você disse que era o que mais queria ver no mundo.
- Tenho ódio de Rembrandt.
- Não esfregue assim a cara, Ana. Você
vai se machucar.
- Quero me machucar.
- Então se machuque. Mas vem.
- Minhas unhas eram limpas. E agora esta
crosta - gemeu ela examinando os dedos em
garra. Limpou a gota de sangue que lhe escorreu do arranhão aberto no
queixo. - Confessa que quer seguir sozinho a viagem, que quer se ver livre de
mim!
Nem
isso. Não queria nada, apenas comer. E mesmo assim, sem aquele antigo
empenho do começo. Gostaria também de sair dançando, a música leve, ele leve
e dançando por entre as árvores até se desintegrar numa pirueta.
- Você
disse que seria a menina mais feliz do mundo quando pisasse comigo em
Amsterdã.
- Tenho ódio de Amsterdã. Eu era tão
perfumada, tão limpa. Me sujei com você.
- Nos sujamos quando acabou o amor. Agora
vem, vamos dormir naquele banco. Vem, Ana.
Ela puxou-lhe a barba.
- Quando foi que fiquei assim tão imunda,
fala!
- Mas eu já disse, quando deixou de me
amar.
- Mas você também - ela soqueou-lhe
fracamente o peito. - Nega que você também...
- Sim,
nós dois. A queda dos anjos, não tem um livro? Ah, que diferença faz.
Vem.
- O banco é frio.
Quando
ele a tomou pela cintura, chegou a se assustar um pouco: era como se
estivesse carregando uma criança, precisamente aquela menininha que fugira há
pouco com seu pedaço de bolo. Quis se comover. E descobriu que se inquietara mais com o susto da menina do que
com o corpo que agora carregava como se carrega uma empoeirada boneca
de vitrina, sem saber o quefazer com ela.
Depositou-a no banco e sentou-se ao lado. Contudo, era lua crescente.
E estavam em Amsterdã. Abriu os braços. Tão oco. Leve. Poderia sair voando
pelo jardim, pela cidade. Só o coração pesando - não era estranho? De onde vinha esse peso? Das lembranças? Pior do
que a ausência do amor, a memória.
- E
onde estão os outros? Para a viagem? Você não disse que era aqui o reino deles? - perguntou ela dobrando o corpo
para a frente até encostar o queixo nos joelhos. - Tudo invenção. Isso
de Marte ser pedregoso, deserto. Uma vez fui lá, queria tanto voltar. Detesto
este jardim.
- Perdemos o outro.
- Que outro?
A voz dela também mudara: era como se
viesse do fundo de uma caverna fria. Sem saída. Se ao menos pudesse
transmitir-lhe esse distanciamento. Nem piedade nem rancor.
- Você
sabia, Ana? Algumas estrelas são leves assim como o ar, a gente podia
carregá-las numa maleta. Uma bagagem de estrelas. Já pensou no espanto do homem que fosse roubar essa maleta? Ficaria
para sempre com as mãos cintilantes, mas tão cintilantes que não
poderia mais tirar as luvas.
-
Olha minhas unhas. Até a menininha fugiu de mim - queixou-se ela enlaçando
as pernas.
- Desconfiou que você ia avançar no seu
bolo.
-
Olha minhas unhas. Será que aqui também dão comida em troca de sangue?
- Não sei.
- Uma
droga de comida. Aquela de Marrocos - disse ela esfregando na areia a
sola da sandália.
- Nosso sangue também deve ser uma droga
de sangue.
O
silêncio foi se fazendo de pequenos ruídos de bichos e plantas até formar um tênue tecido que perpassava pela
folhagem, enganchava-se imponderável numa folha e prosseguia em ondas
até se romper no bico de um pássaro.
- Queria um chocolate quente com bolo. O
creme, eu enchia uma colher de creme que se espalhava na minha boca, eu abria
a boca...
Abriu a boca. Fechou os olhos.
Ele sorriu:
- Estou ouvindo uma música, a gente podia
dançar. Se a gente se amasse agente saía dançando.
Ela levantou as mãos e passou as pontas
dos dedos nos cabelos. Na boca.
- E agora? O que acontece quando não se
tem mais nada com o amor?
Quase
ele levou de novo a mão no bolso para pegar o cigarro, onde fumara o
último?
- Sopra o vento e a gente vira outra
coisa.
- Que coisa?
- Sei
lá. Não quero é voltar a ser gente, eu teria que conviver com as pessoas
e as pessoas - ele murmurou. - Queria ser um passarinho, vi um dia um
passarinho bem de perto e achei que devia ser simples a vida de um passarinho
de penas azuis, os olhinhos lustrosos. Acho que queria ser aquele passarinho.
- Nunca me teria como companheira, nunca.
Gosto de mel, acho que quero ser borboleta. É fácil a vida de borboleta?
- E curta.
O
vento soprou tão forte que a menina loura teve que parar porque o avental
lhe tapou a cara. Segurou o avental, arrumou a fatia de bolo dentro do guardanapo e olhou em redor. Aproximou-se do
banco vazio. Procurou por entre as árvores, voltou até o banco e alongou o
olhar meio desapontado pela alameda também deserta. Ficou esfregando
as solas dos sapatos na areia fina. Guardou
o bolo no bolso e agachou-se para ver o passarinho de penas azuis bicando com
disciplinada voracidade a borboleta que procurava se esconder debaixo
do banco de pedra.
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“NATAL NA BARCA”
Lygia Fagundes Telles
Não quero nem devo lembrar aqui por que me
encontrava naquela barca. Só sei que em redor tudo era silêncio e treva. E
que me sentia bem naquela solidão. Na embarcação desconfortável, tosca,
apenas quatro passageiros. Uma lanterna nos iluminava com sua luz vacilante:
um velho, uma mulher com uma criança e eu.
O velho, um bêbado esfarrapado, deitara-se
de comprido no banco, dirigira palavras amenas a um vizinho invisível e agora
dormia. A mulher estava sentada entre nós, apertando nos braços a criança
enrolada em panos. Era uma mulher jovem e pálida. O longo manto escuro que
lhe cobria a cabeça dava-lhe o aspecto de uma figura antiga.
Pensei em falar-lhe assim que entrei na
barca. Mas já devíamos estar quase no fim da viagem e até aquele instante não
me ocorrera dizer-lhe qualquer palavra. Nem combinava mesmo com uma barca tão
despojada, tão sem artifícios, a ociosidade de um diálogo. Estávamos sós. E o
melhor ainda era não fazer nada, não dizer nada, apenas olhar o sulco negro
que a embarcação ia fazendo no rio.
Debrucei-me na grade de madeira carcomida.
Acendi um cigarro. Ali estávamos os quatro, silenciosos como mortos num
antigo barco de mortos deslizando na escuridão. Contudo, estávamos vivos. E
era Natal.
A caixa de fósforos escapou-me das mãos e
quase resvalou para o rio. Agachei-me para apanhá-la. Sentindo então alguns
respingos no rosto, inclinei-me mais até mergulhar as pontas dos dedos na
água.
— Tão gelada — estranhei, enxugando a mão.
— Mas de manhã é quente.
Voltei-me para a mulher que embalava a
criança e me observava com um meio sorriso. Sentei-me no banco ao seu lado.
Tinha belos olhos claros, extraordinariamente brilhantes. Reparei que suas
roupas (pobres roupas puídas) tinham muito caráter, revestidas de uma certa
dignidade.
— De manhã esse rio é quente — insistiu
ela, me encarando.
— Quente?
— Quente e verde, tão verde que a primeira
vez que lavei nele uma peça de roupa pensei que a roupa fosse sair
esverdeada. É a primeira vez que vem por estas bandas?
Desviei o olhar para o chão de largas
tábuas gastas. E respondi com uma outra pergunta:
— Mas a senhora mora aqui perto?
— Em Lucena. Já tomei esta barca não sei
quantas vezes, mas não esperava que justamente hoje...
A criança agitou-se, choramingando. A mulher
apertou-a mais contra o peito. Cobriu-lhe a cabeça com o xale e pôs-se a
niná-la com um brando movimento de cadeira de balanço. Suas mãos
destacavam-se exaltadas sobre o xale preto, mas o rosto era sereno.
— Seu filho?
— É. Está doente, vou ao especialista, o
farmacêutico de Lucena achou que eu devia ver um médico hoje mesmo. Ainda
ontem ele estava bem mas piorou de repente. Uma febre, só febre... Mas Deus
não vai me abandonar.
— É o caçula?
Levantou a cabeça com energia. O queixo
agudo era altivo mas o olhar tinha a expressão doce.
— É o único. O meu primeiro morreu o ano
passado. Subiu no muro, estava brincando de mágico quando de repente avisou,
vou voar! E atirou-se. A queda não foi grande, o muro não era alto, mas caiu
de tal jeito... Tinha pouco mais de quatro anos.
Joguei o cigarro na direção do rio e o toco
bateu na grade, voltou e veio rolando aceso pelo chão. Alcancei-o com a ponta
do sapato e fiquei a esfregá-lo devagar. Era preciso desviar o assunto para
aquele filho que estava ali, doente, embora. Mas vivo.
— E esse? Que idade tem?
— Vai completar um ano. — E, noutro tom,
inclinando a cabeça para o ombro: — Era um menino tão alegre. Tinha
verdadeira mania com mágicas. Claro que não saía nada, mas era muito
engraçado... A última mágica que fez foi perfeita, vou voar! disse abrindo os
braços. E voou.
Levantei-me. Eu queria ficar só naquela
noite, sem lembranças, sem piedade. Mas os laços (os tais laços humanos) já
ameaçavam me envolver. Conseguira evitá-los até aquele instante. E agora não
tinha forças para rompê-los.
— Seu marido está à sua espera?
— Meu marido me abandonou.
Sentei-me e tive vontade de rir. Incrível.
Fora uma loucura fazer a primeira pergunta porque agora não podia mais parar,
ah! aquele sistema dos vasos comunicantes.
— Há muito tempo? Que seu marido...
— Faz uns seis meses. Vivíamos tão bem, mas
tão bem. Foi quando ele encontrou por acaso essa antiga namorada, me falou
nela fazendo uma brincadeira, a Bila enfeiou, sabe que de nós dois fui eu que
acabei ficando mais bonito? Não tocou mais no assunto. Uma manhã ele se
levantou como todas as manhãs, tomou café, leu o jornal, brincou com o menino
e foi trabalhar. Antes de sair ainda fez assim com a mão, eu estava na
cozinha lavando a louça e ele me deu um adeus através da tela de arame da
porta, me lembro até que eu quis abrir a porta, não gosto de ver ninguém
falar comigo com aquela tela no meio... Mas eu estava com a mão molhada.
Recebi a carta de tardinha, ele mandou uma carta. Fui morar com minha mãe
numa casa que alugamos perto da minha escolinha. Sou professora.
Olhei as nuvens tumultuadas que corriam na
mesma direção do rio. Incrível. Ia contando as sucessivas desgraças com
tamanha calma, num tom de quem relata fatos sem ter realmente participado
deles. Como se não bastasse a pobreza que espiava pelos remendos da sua
roupa, perdera o filhinho, o marido, via pairar uma sombra sobre o segundo
filho que ninava nos braços. E ali estava sem a menor revolta, confiante.
Apatia? Não, não podiam ser de uma apática aqueles olhos vivíssimos, aquelas
mãos enérgicas. Inconsciência? Uma certa irritação me fez andar.
— A senhora é conformada.
— Tenho fé, dona. Deus nunca me abandonou.
— Deus — repeti vagamente.
— A senhora não acredita em Deus?
— Acredito — murmurei. E ao ouvir o som
débil da minha afirmativa, sem saber por quê, perturbei-me. Agora entendia.
Aí estava o segredo daquela segurança, daquela calma. Era a tal fé que
removia montanhas...
Ela mudou a posição da criança, passando-a
do ombro direito para o esquerdo. E começou com voz quente de paixão:
— Foi logo depois da morte do meu menino.
Acordei uma noite tão desesperada que saí pela rua afora, enfiei um casaco e
saí descalça e chorando feito louca, chamando por ele! Sentei num banco do
jardim onde toda tarde ele ia brincar. E fiquei pedindo, pedindo com tamanha
força, que ele, que gostava tanto de mágica, fizesse essa mágica de me
aparecer só mais uma vez, não precisava ficar, se mostrasse só um instante,
ao menos mais uma vez, só mais uma! Quando fiquei sem lágrimas, encostei a cabeça
no banco e não sei como dormi. Então sonhei e no sonho Deus me apareceu, quer
dizer, senti que ele pegava na minha mão com sua mão de luz. E vi o meu
menino brincando com o Menino Jesus no jardim do Paraíso. Assim que ele me
viu, parou de brincar e veio rindo ao meu encontro e me beijou tanto,
tanto... Era tamanha sua alegria que acordei rindo também, com o sol batendo
em mim.
Fiquei sem saber o que dizer. Esbocei um
gesto e em seguida, apenas para fazer alguma coisa, levantei a ponta do xale
que cobria a cabeça da criança. Deixei cair o xale novamente e voltei-me para
o rio. O menino estava morto. Entrelacei as mãos para dominar o tremor que me
sacudiu. Estava morto. A mãe continuava a niná-lo, apertando-o contra o
peito. Mas ele estava morto.
Debrucei-me na grade da barca e respirei
penosamente: era como se estivesse mergulhada até o pescoço naquela água.
Senti que a mulher se agitou atrás de mim.
— Estamos chegando — anunciou.
Apanhei depressa minha pasta. O importante
agora era sair, fugir antes que ela descobrisse, correr para longe daquele
horror. Diminuindo a marcha, a barca fazia uma larga curva antes de atracar.
O bilheteiro apareceu e pôs-se a sacudir o velho que dormia:
– Chegamos!... Ei! chegamos!
Aproximei-me evitando encará-la.
— Acho melhor nos despedirmos aqui — disse
atropeladamente, estendendo a mão.
Ela pareceu não notar meu gesto.
Levantou-se e fez um movimento como se fosse apanhar a sacola. Ajudei-a, mas
ao invés de apanhar a sacola que lhe estendi, antes mesmo que eu pudesse
impedi-lo, afastou o xale que cobria a cabeça do filho.
— Acordou o dorminhoco! E olha aí, deve
estar agora sem nenhuma febre.
— Acordou?!
Ela sorriu:
— Veja...
Inclinei-me. A criança abrira os olhos —
aqueles olhos que eu vira cerrados tão definitivamente. E bocejava,
esfregando a mãozinha na face corada. Fiquei olhando sem conseguir falar.
— Então, bom Natal! — disse ela, enfiando a
sacola no braço.
Sob o manto preto, de pontas cruzadas e
atiradas para trás, seu rosto resplandecia. Apertei-lhe a mão vigorosa e acompanhei-a
com o olhar até que ela desapareceu na noite.
Conduzido pelo bilheteiro, o velho passou
por mim retomando seu afetuoso diálogo com o vizinho invisível. Saí por
último da barca. Duas vezes voltei-me ainda para ver o rio. E pude imaginá-lo
como seria de manhã cedo: verde e quente. Verde e quente.
|
ANEXO D
Aqui encontram-se os trechos dos contos da
maneira como serão espalhados pelo colégio, inclusive com as trocas que devem
ser feitas entre os grupos (trata-se da parte 2). As partes em destaque
vermelho são as pistas sobre onde encontrar os próximos trechos e estão
destacadas neste trabalho para melhor identificação do leitor, assim como as
respostas dos enigmas, que não devem aparecer aos alunos. Estes trechos devem
ser da mesma cor do restante do texto e devem ser dobrados para que os alunos
não leiam as pistas antes de ler o pedaço do conto. É importante destacar que
cada grupo terá um número e que os trechos abaixo estarão depositados em
envelopes com identificação numérica. A ordem dos textos é sempre 3-1-5-2-4.
Grupo 1: VENHA VER O POR DO SOL
PARTE 1:
Perplexa, ela encarou-o um instante. E
vergou a cabeça para trás numa risada.
- Ver o pôr do sol!…Ah, meu Deus…
Fabuloso, fabuloso!… Me implora um último encontro, me atormenta dias
seguidos, me faz vir de longe para esta buraqueira, só mais uma vez, só mais
uma! E para quê? Para ver o pôr do sol num cemitério…
Ele riu também, afetando encabulamento
como um menino pilhado em falta.
- Raquel minha querida, não faça assim
comigo. Você sabe que eu gostaria era de te levar ao meu apartamento, mas
fiquei mais pobre ainda, como se isso fosse possível. Moro agora numa pensão
horrenda, a dona é uma Medusa que vive espiando pelo buraco da fechadura…
- E você acha que eu iria?
- Não se zangue, sei que não iria,
você está sendo fidelíssima. Então pensei, se pudéssemos conversar um
instante numa rua afastada… - disse ele, aproximando-se mais. Acariciou-lhe o
braço com as pontas dos dedos. Ficou sério. E aos poucos, inúmeras rugazinhas
foram se formando em redor dos seus olhos ligeiramente apertados. Os leques
de rugas se aprofundaram numa expressão astuta. Não era nesse instante tão
jovem como aparentava. Mas logo sorriu e a rede de rugas desapareceu sem
deixar vestígio. Voltou-lhe novamente o ar inexperiente e meio desatento
–Você fez bem em vir.
- Quer dizer que o programa… E não
podíamos tomar alguma coisa num bar?
- Estou sem dinheiro, meu anjo, vê se
entende.
- Mas eu pago.
- Com o dinheiro dele? Prefiro beber
formicida. Escolhi este passeio porque é de graça e muito decente, não pode
haver passeio mais decente, não concorda comigo? Até romântico.
Ela olhou em redor. Puxou o braço que
ele apertava.
- Foi um risco enorme Ricardo. Ele é
ciumentíssimo. Está farto de saber que tive meus casos. Se nos pilha juntos,
então sim, quero ver se alguma das suas fabulosas ideias vai me consertar a
vida.
- Mas me lembrei deste lugar
justamente porque não quero que você se arrisque, meu anjo. Não tem lugar
mais discreto do que um cemitério abandonado, veja, completamente abandonado
– prosseguiu ele, abrindo o portão. Os velhos gonzos gemeram. – Jamais seu
amigo ou um amigo do seu amigo saberá que estivemos aqui.
- É um risco enorme, já disse. Não
insista nessas brincadeiras, por favor. E se vem um enterro? Não suporto enterros.
- Mas enterro de quem? Raquel, Raquel,
quantas vezes preciso repetir a mesma coisa?! Há séculos ninguém mais é
enterrado aqui, acho que nem os ossos sobraram, que bobagem. Vem comigo, pode
me dar o braço, não tenha medo…
Isso mesmo: não
tenha medo! Vá em busca de outro trecho do seu texto! O lugar é silencioso,
mas não é um cemitério! Lá poderá ver notícias de gente morta e gente viva.
Resposta: na biblioteca, nos jornais.
|
PARTE 2:
- Você
sabia, Ana? Algumas estrelas são leves assim como o ar, a gente podia
carregá-las numa maleta. Uma bagagem de estrelas. Já pensou no espanto do homem que fosse roubar essa maleta? Ficaria
para sempre com as mãos cintilantes, mas tão cintilantes que não
poderia mais tirar as luvas.
-
Olha minhas unhas. Até a menininha fugiu de mim - queixou-se ela enlaçando
as pernas.
- Desconfiou que você ia avançar no seu
bolo.
-
Olha minhas unhas. Será que aqui também dão comida em troca de sangue?
- Não sei.
- Uma
droga de comida. Aquela de Marrocos - disse ela esfregando na areia a
sola da sandália.
- Nosso sangue também deve ser uma droga
de sangue.
O
silêncio foi se fazendo de pequenos ruídos de bichos e plantas até formar um tênue tecido que perpassava pela
folhagem, enganchava-se imponderável numa folha e prosseguia em ondas
até se romper no bico de um pássaro.
- Queria um chocolate quente com bolo. O
creme, eu enchia uma colher de creme que se espalhava na minha boca, eu abria
a boca...
Abriu a boca. Fechou os olhos.
Ele sorriu:
- Estou ouvindo uma música, a gente podia
dançar. Se a gente se amasse agente saía dançando.
Ela levantou as mãos e passou as pontas
dos dedos nos cabelos. Na boca.
- E agora? O que acontece quando não se
tem mais nada com o amor?
Quase
ele levou de novo a mão no bolso para pegar o cigarro, onde fumara o
último?
- Sopra o vento e a gente vira outra
coisa.
- Que coisa?
- Sei
lá. Não quero é voltar a ser gente, eu teria que conviver com as pessoas
e as pessoas - ele murmurou. - Queria ser um passarinho, vi um dia um
passarinho bem de perto e achei que devia ser simples a vida de um passarinho
de penas azuis, os olhinhos lustrosos. Acho que queria ser aquele passarinho.
- Nunca me teria como companheira, nunca.
Gosto de mel, acho que quero ser borboleta. É fácil a vida de borboleta?
- E curta.
Oooops!!! Este trecho não te pertence!
Procure os integrantes do grupo 5!
Agora sim você está
no caminho certo! Mas espere aí: se ao invés de Amsterdã, a história fosse em
Forks, o vento sopraria e eu não me transformaria nem em passarinho nem em
borboleta! Eu viraria vampiro!
Resposta: na biblioteca,
em um dos livros da Saga Crepúsculo.
|
PARTE 3:
Ela subiu sem pressa a tortuosa ladeira. À
medida que avançava, as casas iam rareando, modestas casas espalhadas sem
simetria e ilhadas em terrenos baldios. No meio da rua sem calçamento,
coberta aqui e ali por um mato rasteiro, algumas crianças brincavam de roda.
A débil cantiga infantil era a única nota viva na quietude da tarde.
Ele a esperava encostado a uma árvore.
Esguio e magro, metido num largo blusão azul-marinho, cabelos crescidos e
desalinhados, tinham um jeito jovial de estudante.
- Minha querida Raquel.
Ela encarou-o, séria. E olhou para os
próprios sapatos.
- Veja que lama. Só mesmo você
inventaria um encontro num lugar destes. Que ideia, Ricardo, que ideia! Tive
que descer do taxi lá longe, jamais ele chegaria aqui em cima.
Ele sorriu entre malicioso e ingênuo.
- Jamais, não é? Pensei que viesse
vestida esportivamente e agora me aparece nessa elegância…Quando você andava
comigo, usava uns sapatões de sete-léguas, lembra?
- Foi para falar sobre isso que você
me fez subir até aqui? – perguntou ela, guardando as luvas na bolsa. Tirou um
cigarro. – Hem?!
- Ah, Raquel… – e ele tomou-a pelo
braço rindo.
- Você está uma coisa de linda. E fuma
agora uns cigarrinhos pilantras, azul e dourado…Juro que eu tinha que ver uma
vez toda essa beleza, sentir esse perfume.
- Então fiz mal?
- Podia ter escolhido um outro lugar,
não? – Abrandara a voz – E que é isso aí? Um cemitério?
Ele voltou-se para o velho muro
arruinado. Indicou com o olhar o portão de ferro, carcomido pela ferrugem.
- Cemitério abandonado, meu anjo.
Vivos e mortos, desertaram todos. Nem os fantasmas sobraram, olha aí como as
criancinhas brincam sem medo – acrescentou, lançando um olhar às crianças
rodando na sua ciranda. Ela tragou lentamente. Soprou a fumaça na cara do
companheiro. Sorriu.
– Ricardo e suas ideias. E agora? Qual
é o programa?
Brandamente ele a tomou pela cintura.
- Conheço bem tudo isso, minha gente
está enterrada aí. Vamos entrar um instante e te mostrarei o pôr do sol mais
lindo do mundo.
Raquel andou
demais e ficou toda suja... se pelo menos tivesse ali um AHIEBNOR para lavar
o rosto...
Resposta: banheiro
feminino
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PARTE 4:
Um baque metálico decepou-lhe a
palavra pelo meio. Olhou em redor. A peça estava deserta. Voltou o olhar para
a escada. No topo, Ricardo a observava por detrás da portinhola fechada.
Tinha seu sorriso meio inocente, meio malicioso.
- Isto nunca foi o jazigo da sua
família, seu mentiroso? Brincadeira mais cretina! – exclamou ela, subindo
rapidamente a escada. – Não tem graça nenhuma, ouviu?
Ele esperou que ela chegasse quase a
tocar o trinco da portinhola de ferro. Então deu uma volta à chave,
arrancou-a da fechadura e saltou para trás.
- Ricardo, abre isto imediatamente! Vamos,
imediatamente! – ordenou, torcendo o trinco.- Detesto esse tipo de
brincadeira, você sabe disso. Seu idiota! É no que dá seguir a cabeça de um
idiota desses. Brincadeira mais estúpida.
- Uma réstia de sol vai entrar pela
frincha da porta, tem uma frincha na porta. Depois, vai se afastando
devagarinho, bem devagarinho. Você terá o pôr do sol mais belo do mundo.
Ela sacudia a portinhola.
- Ricardo, chega, já disse! Chega!
Abre imediatamente, imediatamente!- Sacudiu a portinhola com mais força
ainda, agarrou-se a ela, dependurando-se por entre as grades. Ficou ofegante,
os olhos cheios de lágrimas. Ensaiou um sorriso. – Ouça, meu bem, foi
engraçadíssimo, mas agora preciso ir mesmo, vamos, abra…
Ele já não sorria. Estava sério, os
olhos diminuídos. Em redor deles, reapareceram as rugazinhas abertas em
leque.
- Boa noite, Raquel.
- Chega, Ricardo! Você vai me pagar!…
– gritou ela, estendendo os braços por entre as grades, tentando agarrá-lo.-
Cretino! Me dá a chave desta porcaria, vamos!- exigiu, examinando a fechadura
nova em folha. Examinou em seguida as grades cobertas por uma crosta de
ferrugem. Imobilizou-se. Foi erguendo o olhar até a chave que ele balançava
pela argola, como um pêndulo. Encarou-o, apertando contra a grade a face sem
cor. Esbugalhou os olhos num espasmo e amoleceu o corpo. Foi escorregando.
- Não, não…
Voltado ainda para ela, ele chegara
até a porta e abriu os braços. Foi puxando as duas folhas escancaradas.
- Boa noite, meu anjo.
Os lábios dela se pregavam um ao
outro, como se entre eles houvesse cola. Os olhos rodavam pesadamente numa
expressão embrutecida.
- Não…
Guardando a chave no bolso, ele
retomou o caminho percorrido. No breve silêncio, o som dos pedregulhos se
entrechocando úmidos sob seus sapatos. E, de repente, o grito medonho,
inumano:
- NÃO!
Durante algum tempo ele ainda ouviu os
gritos que se multiplicaram, semelhantes aos de um animal sendo estraçalhado.
Depois, os uivos foram ficando mais remotos, abafados como se viessem das
profundezas da terra. Assim que atingiu o portão do cemitério, ele lançou ao
poente um olhar mortiço. Ficou atento. Nenhum ouvido humano escutaria agora
qualquer chamado. Acendeu um cigarro e foi descendo a ladeira. Crianças ao
longe brincavam de roda.
Quando estão
abertas, não conseguimos copiar nada do quadro... quando estão fechadas, não
nos permitem ver o pôr-do-sol!!!
Resposta: na cortina da
sala de aula.
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PARTE 5:
O mato rasteiro dominava tudo. E, não
satisfeito de ter se alastrado furioso pelos canteiros, subira pelas
sepulturas, infiltrando-se ávido pelos rachões dos mármores, invadira
alamedas de pedregulhos esverdinhados, como se quisesse com a sua violenta
força de vida cobrir para sempre os últimos vestígios da morte. Foram andando
vagarosamente pela longa alameda banhada de sol. Os passos de ambos ressoavam
sonoros como uma estranha música feita do som das folhas secas trituradas
sobre os pedregulhos. Amuada mas obediente, ela se deixava conduzir como uma
criança. Às vezes mostrava certa curiosidade por uma ou outra sepultura com
os pálidos medalhões de retratos esmaltados.
- É imenso, hem? E tão miserável,
nunca vi um cemitério mais miserável, é deprimente – exclamou ela atirando a
ponta do cigarro na direção de um anjinho de cabeça decepada. - Vamos embora,
Ricardo, chega.
- Ah, Raquel, olha um pouco para esta
tarde! Deprimente por quê? Não sei onde foi que eu li, a beleza não está nem
na luz da manhã nem na sombra da tarde, está no crepúsculo, nesse meio-tom,
nessa ambiguidade. Estou lhe dando um crepúsculo numa bandeja e você se
queixa.
- Não gosto de cemitério, já disse. E
ainda mais cemitério pobre.
Delicadamente ele beijou-lhe a mão.
- Você prometeu dar um fim de tarde a
este seu escravo.
- É, mas fiz mal. Pode ser muito
engraçado, mas não quero me arriscar mais.
- Ele é tão rico assim?
- Riquíssimo. Vai me levar agora numa
viagem fabulosa até o Oriente. Já ouviu falar no Oriente? Vamos até o
Oriente, meu caro…
Ele apanhou um pedregulho e fechou-o
na mão. A pequenina rede de rugas voltou a se estender em redor dos seus
olhos. A fisionomia, tão aberta e lisa, repentinamente escureceu,
envelhecida. Mas logo o sorriso reapareceu e as rugazinhas sumiram.
- Eu também te levei um dia para
passear de barco, lembra?
Recostando a cabeça no ombro do homem,
ela retardou o passo.
- Sabe Ricardo, acho que você é mesmo
tantã…Mas, apesar de tudo, tenho às vezes saudade daquele tempo. Que ano
aquele! Palavra que, quando penso, não entendo até hoje como aguentei tanto,
imagine um ano.
- É que você tinha lido A dama das Camélias, ficou assim toda
frágil, toda sentimental. E agora? Que romance você está lendo agora. Hem?
- Nenhum – respondeu ela, franzindo os
lábios. Deteve-se para ler a inscrição de uma laje despedaçada: – A minha querida esposa, eternas saudades
– leu em voz baixa.
Fez um muxoxo.- Pois sim. Durou pouco
essa eternidade.
Ele atirou o pedregulho num canteiro
ressequido.
- Mas é esse abandono na morte que faz
o encanto disto. Não se encontra mais a menor intervenção dos vivos, a
estúpida intervenção dos vivos. Veja- disse, apontando uma sepultura fendida,
a erva daninha brotando insólita de dentro da fenda -, o musgo já cobriu o
nome na pedra. Por cima do musgo, ainda virão as raízes, depois as
folhas…Esta a morte perfeita, nem lembrança, nem saudade, nem o nome sequer.
Nem isso.
Ela aconchegou-se mais a ele. Bocejou.
- Está bem, mas agora vamos embora que
já me diverti muito, faz tempo que não me divirto tanto, só mesmo um cara
como você podia me fazer divertir assim – Deu-lhe um rápido beijo na face. –
Chega Ricardo, quero ir embora.
- Mais alguns passos…
Isso! Trabalho quase cumprido! Só resta colocar a
história em ordem!
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Grupo 2: AS FORMIGAS
PARTE 1:
A mulher não respondeu, concentrada no
esforço de subir a estreita escada de caracol que ia dar no quarto. Acendeu a
luz. O quarto não podia ser menor, com o teto em declive tão acentuado que
nesse trecho teríamos que entrar de gatinhas. Duas camas, dois armários e uma
cadeira de palhinha pintada de dourado. No ângulo onde o teto quase se
encontrava com o assoalho, estava um caixotinho coberto com um pedaço de
plástico. Minha prima largou a mala e pondo-se de joelhos puxou o caixotinho
pela alça de corda. Levantou o plástico. Parecia fascinada.
-
Mas que ossos tão miudinhos! São de criança?
–
Ele disse que eram de adulto. De um anão.
- De um anão? É mesmo, a gente vê que já
estão formados… Mas que maravilha, é raro à beça esqueleto de anão. E tão
limpo, olha aí admirou-se ela. Trouxe na ponta dos dedos um pequeno crânio de
uma brancura de cal. – Tão perfeito, todos os dentinhos!
-
Eu ia jogar tudo no lixo, mas se você se interessa pode ficar com ele.
O banheiro é aqui ao lado, só vocês é que vão usar, tenho o meu lá embaixo.
Banho quente, extra. Telefone, também. Café das sete às nove, deixo a mesa
posta na cozinha com a garrafa térmica, fechem bem a garrafa – recomendou
coçando a cabeça. A peruca se deslocou ligeiramente. Soltou uma baforada
final: – Não deixem a porta aberta senão meu gato foge.
Ficamos
nos olhando e rindo enquanto ouvíamos o barulho dos seus chinelos de salto na
escada. E a tosse encatarrada.
Esvaziei a mala, dependurei a blusa
amarrotada num cabide que enfiei num vão da veneziana, prendi na parede, com
durex, uma gravura de Grassmann e sentei meu urso de pelúcia em cima do
travesseiro. Fiquei vendo minha prima subir na cadeira, desatarraxar a
lâmpada fraquíssima que pendia de um fio solitário no meio do teto e no lugar
atarraxar uma lâmpada de duzentas velas que tirou da sacola. O quarto ficou
mais alegre. Em compensação, agora a gente podia ver que a roupa de cama não
era tão alva assim, alva era a pequena tíbia que ela tirou de dentro do
caixotinho. Examinou-a. Tirou uma vértebra e olhou pelo buraco tão reduzido
como o aro de um anel. Guardou-as com a delicadeza com que se amontoam ovos
numa caixa.
-
Um anão. Raríssimo, entende? E acho que não falta nenhum ossinho, vou
trazer as ligaduras, quero ver se no fim da semana começo a montar ele.
Abrimos
uma lata de sardinha que comemos com pão, minha prima tinha sempre
alguma lata escondida, costumava estudar até a madrugada e depois fazia sua
ceia. Quando acabou o pão, abriu um pacote de bolacha Maria.
- De onde vem esse cheiro? – perguntei
farejando. Fui até o caixotinho, voltei, cheirei o assoalho. – Você não está
sentindo um cheiro meio ardido?
- É de bolor. A casa inteira cheira assim –
ela disse. E puxou o caixotinho para debaixo da cama.
No
sonho, um anão louro de colete xadrez e cabelo repartido no meio entrou no
quarto fumando charuto. Sentou-se na cama da minha prima, cruzou as
perninhas e ali ficou muito sério, vendo-a dormir. Eu quis gritar, tem um
anão no quarto! mas acordei antes. A luz estava acesa. Ajoelhada no chão,
ainda vestida, minha prima olhava fixamente algum ponto do assoalho.
Não em forma de
esqueleto, mas é o lugar onde os anões adoram ficar nas casas.
Resposta: jardim.
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PARTE 2:
— Foi logo depois da morte do meu menino.
Acordei uma noite tão desesperada que saí pela rua afora, enfiei um casaco e
saí descalça e chorando feito louca, chamando por ele! Sentei num banco do
jardim onde toda tarde ele ia brincar. E fiquei pedindo, pedindo com tamanha
força, que ele, que gostava tanto de mágica, fizesse essa mágica de me
aparecer só mais uma vez, não precisava ficar, se mostrasse só um instante,
ao menos mais uma vez, só mais uma! Quando fiquei sem lágrimas, encostei a
cabeça no banco e não sei como dormi. Então sonhei e no sonho Deus me
apareceu, quer dizer, senti que ele pegava na minha mão com sua mão de luz. E
vi o meu menino brincando com o Menino Jesus no jardim do Paraíso. Assim que
ele me viu, parou de brincar e veio rindo ao meu encontro e me beijou tanto,
tanto... Era tamanha sua alegria que acordei rindo também, com o sol batendo
em mim.
Fiquei sem saber o que dizer. Esbocei um
gesto e em seguida, apenas para fazer alguma coisa, levantei a ponta do xale
que cobria a cabeça da criança. Deixei cair o xale novamente e voltei-me para
o rio. O menino estava morto. Entrelacei as mãos para dominar o tremor que me
sacudiu. Estava morto. A mãe continuava a niná-lo, apertando-o contra o
peito. Mas ele estava morto.
Debrucei-me na grade da barca e respirei
penosamente: era como se estivesse mergulhada até o pescoço naquela água.
Senti que a mulher se agitou atrás de mim.
— Estamos chegando — anunciou.
Apanhei depressa minha pasta. O importante
agora era sair, fugir antes que ela descobrisse, correr para longe daquele
horror. Diminuindo a marcha, a barca fazia uma larga curva antes de atracar.
O bilheteiro apareceu e pôs-se a sacudir o velho que dormia:
– Chegamos!... Ei! chegamos!
Aproximei-me evitando encará-la.
— Acho melhor nos despedirmos aqui — disse
atropeladamente, estendendo a mão.
Ela pareceu não notar meu gesto.
Levantou-se e fez um movimento como se fosse apanhar a sacola. Ajudei-a, mas
ao invés de apanhar a sacola que lhe estendi, antes mesmo que eu pudesse
impedi-lo, afastou o xale que cobria a cabeça do filho.
Oooops!!! Este trecho não te pertence!
Procure os integrantes do grupo 3!
Agora sim você está
no caminho certo! Mas atenção: é hora das despedidas! Tchau! Até amanhã! Até
logo! Bom final de semana! Falô!
Resposta: portão.
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PARTE 3:
Quando
minha prima e eu descemos do táxi já era quase noite. Ficamos imóveis
diante do velho sobrado de janelas ovaladas, iguais a dois olhos tristes, um
deles vazado por uma pedrada. Descansei a mala no chão e apertei o braço da
prima.
- É sinistro.
Ela
me impeliu na direção da porta. Tínhamos outra escolha? Nenhuma pensão
nas redondezas oferecia um preço melhor a duas pobres estudantes, com
liberdade de usar o fogareiro no quarto, a dona nos avisara por telefone que
podíamos fazer refeições ligeiras com a condição de não provocar incêndio.
Subimos a escada velhíssima, cheirando a creolina.
- Pelo menos não vi sinal de barata – disse
minha prima.
A dona era uma velha balofa, de peruca mais
negra do que a asa da graúna. Vestia um desbotado pijama de seda japonesa e
tinha as unhas aduncas recobertas por uma crosta de esmalte vermelho-escuro
descascado nas pontas encardidas. Acendeu um charutinho.
- É você que estuda medicina? – perguntou
soprando a fumaça na minha
direção.
- Estudo direito. Medicina é ela.
A
mulher nos examinou com indiferença. Devia estar pensando em outra
coisa quando soltou uma baforada tão densa que precisei desviar a cara. A
saleta era escura, atulhada de móveis velhos, desparelhados. No sofá de
palhinha furada no assento, duas almofadas que pareciam ter sido feitas com
os restos de um antigo vestido, os bordados salpicados de vidrilho.
-
Vou mostrar o quarto, fica no sótão – disse ela em meio a um acesso de
tosse. Fez um sinal para que a seguíssemos.
- O
inquilino antes de vocês também estudava medicina, tinha um caixotinho de
ossos que esqueceu aqui, estava sempre mexendo neles.
Minha prima voltou-se: – Um caixote de
ossos?
Não poderia ser uma
caixa de chocolate? Tinha mesmo que ser de ossos? Isso está ficando tenso!
Correndo pra cá e pra lá, cuidado para não desidratar! Vá ao OBREUBODE.
Resposta: bebedouro.
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PARTE 4:
Voltei tarde essa noite, um colega tinha se
casado e teve festa. Vim animada, com vontade de cantar, passei da conta. Só
na escada é que me lembrei: o anão. Minha prima arrastara a mesa para a porta
e estudava com o bule fumegando no fogareiro.
- Hoje não vou dormir, quero ficar de vigia
– ela avisou. O assoalho ainda estava limpo. Me abracei ao urso.
- Estou com medo.
Ela foi buscar uma pílula para atenuar
minha ressaca, me fez engolir a pílula com um gole de chá e ajudou a me
despir.
- Fico vigiando, pode dormir sossegada. Por
enquanto não apareceu nenhuma, não está na hora delas, é daqui a pouco que
começa. Examinei com a lupa debaixo da porta, sabe que não consigo descobrir
de onde brotam?
Tombei na cama, acho que nem respondi. No
topo da escada o anão me agarrou pelos pulsos e rodopiou comigo até o quarto,
Acorda, acorda! Demorei para reconhecer minha prima que me segurava pelos
cotovelos. Estava lívida. E vesga.
- Voltaram – ela disse.
Apertei entre as mãos a cabeça dolorida.
- Estão aí? – Ela falava num tom miúdo,
como se uma formiguinha falasse com sua voz.
-
Acabei dormindo em cima da mesa, estava exausta. Quando acordei, a
trilha já estava em plena movimentação. Então fui ver o caixotinho, aconteceu
o que eu esperava…
- O que foi? Fala depressa, o que foi?
Ela
firmou o olhar oblíquo no caixotinho debaixo da cama.
- Estão mesmo montando ele. E rapidamente,
entende? O esqueleto já está inteiro, só falta o fêmur. E os ossinhos da mão
esquerda, fazem isso num instante. Vamos embora daqui.
- Você está falando sério?
- Vamos embora, já arrumei as malas.
A mesa estava limpa e vazios os armários
escancarados.
-
Mas sair assim, de madrugada? Podemos sair assim?
- Imediatamente, melhor não esperar que a
bruxa acorde. Vamos, levanta!
- E para onde a gente vai?
- Não interessa, depois a gente vê. Vamos,
vista isto, temos que sair antes que o anão fique pronto.
Olhei de longe a trilha: nunca elas me
pareceram tão rápidas. Calcei os sapatos, descolei a gravura da parede,
enfiei o urso no bolso da japona e fomos arrastando as malas pelas escadas,
mais intenso o cheiro que vinha do quarto, deixamos a porta aberta. Foi o gato
que miou comprido ou foi um grito?
No céu, as últimas estrelas já
empalideciam. Quando encarei a casa, só a janela vazada nos via, o outro olho
era penumbra.
Tic-tac, tic-tac...
O tempo passou que a prima nem viu. Rápido, seu tempo também está passando! Seus
colegas já devem estar na sala!
Resposta: no relógio da
sala de aula.
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PARTE 5:
- Que
é que você está fazendo aí? – perguntei.
- Essas formigas. Apareceram de repente, já
enturmadas. Tão decididas, está vendo?
Levantei e dei com as formigas pequenas e
ruivas que entravam em trilha espessa pela fresta debaixo da porta,
atravessavam o quarto, subiam pela parede do caixotinho de ossos e
desembocavam lá dentro, disciplinadas como um exército em marcha exemplar.
- São
milhares, nunca vi tanta formiga assim. E não tem trilha de volta, só de ida
– estranhei.
- Só de ida.
Contei-lhe meu pesadelo com o anão sentado
em sua cama.
- Está debaixo dela – disse minha prima e
puxou para fora o caixotinho.
Levantou o plástico. - Preto de formiga! Me
dá o vidro de álcool.
- Deve ter sobrado alguma coisa aí nesses
ossos e elas descobriram, formiga descobre tudo. Se eu fosse você, levava
isso lá pra fora.
- Mas os ossos estão completamente limpos,
eu já disse. Não ficou nem um fiapo de cartilagem, limpíssimos. Queria saber
o que essas bandidas vêm fuçar aqui.
Respingou
fartamente o álcool em todo o caixote. Em seguida, calçou os sapatos
e, como uma equilibrista andando no fio de arame, foi pisando firme, um pé
diante do outro na trilha de formigas. Foi e voltou duas vezes. Apagou o
cigarro. Puxou a cadeira. E ficou olhando dentro do caixotinho.
- Esquisito. Muito esquisito.
– O quê?
-
Me lembro que botei o crânio em cima da pilha, me lembro que até calcei ele
com as omoplatas para não rolar. E agora ele está aí no chão do
caixote, com uma omoplata de cada lado. Por acaso você mexeu aqui?
- Deus me livre, tenho nojo de osso! Ainda
mais de anão.
Ela
cobriu o caixotinho com o plástico, empurrou-o com o pé e levou o fogareiro
para a mesa, era a hora do seu chá. No chão, a trilha de formigas
mortas era agora uma fita escura que encolheu. Uma formiguinha que escapou da
matança passou perto do meu pé, já ia esmagá-la quando vi que levava as mãos
à cabeça, como uma pessoa desesperada. Deixei-a sumir numa fresta do assoalho.
Voltei a sonhar aflitivamente, mas dessa
vez foi o antigo pesadelo com os exames, o professor fazendo uma pergunta
atrás da outra e eu muda diante do único ponto que não tinha estudado. Às
seis horas o despertador disparou veementemente. Travei a campainha. Minha
prima dormia com a cabeça coberta. No banheiro, olhei com atenção para as
paredes, para o chão de cimento, à procura delas. Não vi nenhuma. Voltei
pisando na ponta dos pés e então entreabri as folhas da veneziana. O cheiro
suspeito da noite tinha desaparecido. Olhei para o chão: desaparecera também
a trilha do exército massacrado. Espiei debaixo da cama e não vi o menor
movimento de formigas no caixotinho coberto.
Quando
cheguei por volta das sete da noite, minha prima já estava no quarto. Achei-a
tão abatida que carreguei no sal da omelete, tinha a pressão baixa. Comemos
num silêncio voraz. Então me lembrei.
- E as formigas?
- Até agora, nenhuma.
- Você varreu as mortas?
Ela ficou me olhando.
- Não varri nada, estava exausta. Não foi
você que varreu?
- Eu?! Quando acordei, não tinha nem sinal
de formiga nesse chão, estava certa que antes de deitar você juntou tudo…
Mas, então, quem?!
Isso! Trabalho quase cumprido! Só resta colocar a
história em ordem!
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Grupo 3: O JARDIM SELVAGEM
PARTE 1:
— Você agora me lembrou o Ed menino. Fui
a mãezinha dele quando a nossa mãe morreu. E agora se casa assim de repente,
sem convidar a família, como se tivesse vergonha da gente… Mas não é mesmo
esquisito? E essa moça. Cristo-Rei? Ninguém sabe quem ela é…
— Tio Ed deve saber, ora.
Acho que ela se impressionou com minha
resposta porque sossegou um pouco. Mas logo desatou a falar de novo com
aquela fala aflita de quem vai pegar o trem, falava assim quando chegava a
hora de viajar.
— Ele parece feliz, sem dúvida, mas ao
mesmo tempo me olhou de um jeito… Era como se quisesse me dizer qualquer
coisa e não tivesse coragem, senti isso com tanta força que meu coração até
doeu, quis perguntar. O que foi, Ed! Pode me dizer o que foi? Mas ele só me
olhava e não disse nada. Tive a impressão de que estava com medo.
— Com medo de quê?
— Não sei, não sei, mas foi como se eu
estivesse vendo Ed menino outra vez. Tinha pavor do escuro, só queria dormir
de luz acesa. Papai proibiu essa história de luz e não me deixou mais ir lá
fazer companhia, achava que eu poderia estragá-lo com muito mimo. Mas uma
noite não resisti e entrei escondida no quarto. Estava acordado, sentado na
cama. Quer que eu fique aqui até você dormir? perguntei. Pode ir embora, ele
disse, já não me importo mais de ficar no escuro. Então dei-lhe um beijo,
como fiz hoje. Ele me abraçou e me olhou do mesmo jeito que me olhou agora,
querendo confessar que estava com medo. Mas sem coragem de confessar.
Disfarcei um bocejo. E afastei as
cobertas porque já estava transpirando. Quando minha tia anunciava uma
história importante, na certa vinha alguma bobagem sem importância nenhuma.
De resto, tia Pombinha tinha a mania de ver mistério em tudo, até no nosso
limoeiro que dava às vezes uns limões adocicados. Não passava um dia sem
falar nos tais pressentimentos.
— Mas por que ele tinha de ter medo?
Ela franziu a testa. Seus olhinhos
redondos ficaram mais redondos ainda.
— Aí é que está… Quem é que pode saber?
Ed sempre foi muito discreto, não é de se abrir com a gente, ele esconde. Que
moça será essa?
Pois é, que moça
será esta? Será que gosta de basquete ou vôlei? Ou será que gosta de esportes
que marquem gols, como futsal ou handebol? Será, enfim, que gosta de
esportes?
Resposta: quadra de
esporte, na trave.
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PARTE 2:
Ela apertou os olhos estrábicos, ficava
estrábica quando se preocupava.
-
Muito esquisito mesmo. Esquisitíssimo.
Fui
buscar o tablete de chocolate e perto da porta senti de novo o cheiro, mas
seria bolor? Não me parecia um cheiro assim inocente, quis chamar a
atenção da minha prima para esse aspecto, mas ela estava tão deprimida que
achei melhor ficar quieta. Espargi água-de-colônia Flor de Maçã por todo o
quarto (e se ele cheirasse como um pomar?) e fui deitar cedo. Tive o segundo
tipo de sonho, que competia nas repetições com o tal sonho da prova oral,
nele eu marcava encontro com dois namorados ao mesmo tempo. E no mesmo lugar.
Chegava o primeiro e minha aflição era levá-lo embora dali antes que chegasse
o segundo. O segundo, desta vez, era o anão. Quando só restou o oco de
silêncio e sombra, a voz da minha prima me fisgou e me trouxe para a
superfície. Abri os olhos com esforço. Ela estava sentada na beira da minha
cama, de pijama e completamente estrábica.
- Elas voltaram.
- Quem?
-
As formigas. Só atacam de noite, antes da madrugada. Estão todas aí de
novo. A trilha da véspera, intensa, fechada, seguia o antigo percurso da
porta até o caixotinho de ossos por onde subia na mesma formação até
desformigar lá dentro. Sem caminho de volta.
- E os ossos?
Ela se enrolou no cobertor, estava
tremendo.
-
Aí é que está o mistério. Aconteceu uma coisa, não entendo mais nada!
Acordei pra fazer pipi, devia ser umas três horas. Na volta, senti que no
quarto tinha algo mais, está me entendendo? Olhei pro chão e vi a fila dura
de formigas, você se lembra? Não tinha nenhuma quando chegamos. Fui ver o
caixotinho, todas se trançando lá dentro, lógico, mas não foi isso o que
quase me fez cair pra trás, tem uma coisa mais grave: é que os ossos estão
mesmo mudando de posição, eu já desconfiava mas agora estou certa, pouco a
pouco eles estão… Estão se organizando.
- Como, se organizando?
Ela ficou pensativa. Comecei a tremer de
frio, peguei uma ponta do seu cobertor. Cobri meu urso com o lençol.
-
Você lembra, o crânio entre as omoplatas, não deixei ele assim. Agora
é a coluna vertebral que já está quase formada, uma vértebra atrás da outra,
cada ossinho tomando o seu lugar, alguém do ramo está montando o esqueleto,
mais um pouco e… Venha ver!
- Credo, não quero ver nada. Estão colando
o anão, é isso?
Ficamos
olhando a trilha rapidíssima, tão apertada que nela não caberia sequer um
grão de poeira. Pulei-a com o maior cuidado quando fui esquentar o
chá. Uma formiguinha desgarrada (a mesma daquela noite?) sacudia a cabeça entre
as mãos. Comecei a rir e tanto que se o chão não estivesse ocupado, rolaria
por ali de tanto rir. Dormimos juntas na minha cama. Ela dormia ainda quando
saí para a primeira aula. No chão, nem sombra de formiga, mortas e vivas
desapareciam com a luz do dia.
Oooops!!! Este trecho não te pertence!
Procure os integrantes do grupo 4!
Agora sim você está
no caminho certo. Mas espera! Um anão? Sim, até um anão conseguiria pegar um
destes livros!
Resposta: na biblioteca,
na fileira mais baixa de livros, dentro de um livro.
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PARTE 3:
— Daniela é assim como um jardim selvagem
— disse o tio Ed olhando para o teto. — Como um jardim selvagem…
Tia Pombinha concordou fazendo uma cara
muito esperta. E foi correndo buscar o maldito licor de cacau feito em casa.
Passei a mão na tampa da caixa de marrom-glacê que ele trouxera. Era a
segunda ou terceira vez que a presenteava com uma caixa igual, eu já sabia
que aquele nome era como o papel dourado embrulhando simples castanhas
açucaradas. Mas, e um jardim selvagem? O que era um jardim selvagem?
Foi o que lhe perguntei. Ele me olhou com
um ar de gigante da montanha falando com a formiguinha.
— Jardim selvagem é um jardim selvagem,
menina.
— Ah, bom — eu disse. E aproveitei a
entrada de tia Pombinha para fugir da sala. A tal caixa estava mesmo fechada,
tão cedo não seria aberta. E o licor de cacau era tão ruim que eu já tinha
visto uma visita guardá-lo na boca para depois cuspir. Na bacia, fingindo
lavar as mãos.
Mais tarde, quando eu já enfiava a
camisola para dormir, tia Pombinha entrou no meu quarto. Sentou-se na cama. A
caixa de doces já devia estar enfurnada em alguma gaveta. Sovina, sovina.
— O Ed casado, imagine! Até parece
mentira, o meu querido Ed casado há mais de uma semana. Mas por que não me
avisou, Cristo-Rei! Como é que ele se casa assim, sem participar… Que
loucura!
— Decerto não quis dar festa.
— Mas não seria preciso festa, eu só
gostaria de saber — choramingou, fazendo bico. — Ainda na noite passada ele
me apareceu em sonho…
— Apareceu? — perguntei metendo-me na
cama.
Os sonhos de tia Pombinha eram todos
horríveis, estava para chegar o dia em que viria anunciar que sonhara com
alguma coisa que prestasse.
— Não me lembro bem como foi, ele logo
sumiu no meio de outras pessoas. Mas o que me deixou nervosa foi ter sonhado
com dentes nessa mesma noite. Você sabe, não é nada bom sonhar com dentes.
— Tratar deles é pior ainda.
Sorriu sem vontade. Ficou toda sentimental
quando resolveu me cobrir até o pescoço.
Jardim selvagem?
Casamento secreto? Luvinha na mão direita? Quanto mistério... será que a
escola de magia e bruxaria de Hogwarts desvendaria tal mistério?
Resposta: na biblioteca,
em um dos livros do Harry Potter.
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PARTE 4:
Não falei com ninguém sobre essa
história. Ma levei o maior susto do mundo quando dois meses depois tia
Daniela telefonou da chácara para avisar que tio Ed estava muito doente. Tia
Pombinha começou a tremer. O pescoço ficou uma mancha só.
— Deve ser a úlcera que voltou… Meu
querido Ed! Cristo-Rei, será que é mesmo grave? Ducha, depressa, vai buscar o
calmante, quinze gotas num copo de água açucarada… Cristo-Rei! A úlcera…
Contei cinquenta. E carreguei no açúcar
para disfarçar o gosto. Antes de levar o copo, despejei ainda mais umas
gotas.
Assim que acordou, à hora do jantar,
desandou nos telefonemas avisando à velharia da irmandade que o “menino
estava doente”.
— E tia Daniela? — perguntei quando ela
parou de choramingar.
— Tem sido dedicadíssima, não sai de
perto dele um só minuto. Falei também com o médico, disse que nunca encontrou
criatura tão eficiente, tem sido uma enfermeira e tanto. É o que me deixa
mais descansada. Meu querido menino…
Quando Conceição veio me anunciar que ele
tinha se matado com um tiro, assustei-me à beça. Mas aquele primeiro susto
que levara quando me disseram que ele estava doente fora um susto maior
ainda. Eu chegava da escola quando Conceição veio correndo ao meu encontro.
— Seu tio Ed se matou hoje de manhã! Se
matou com um tiro!
Larguei a pasta.
— Um tiro no ouvido?
— Lá sei se foi no ouvido, não me
contaram mais nada, dona Pombinha parecia louca, mal podia falar. Já seguiu
com as irmãs para a chácara, foi um tamanho berreiro! Todas berravam ao mesmo
tempo, um fim de mundo!
Dessa vez achei muito bom que eu
estivesse na escola quando chegou a notícia. Conceição enxugou duas lágrimas
na barra do avental enquanto fritava batatas. Peguei uma batata que caíra da
frigideira e afundei-a no sal. Estava quase crua.
— Mas por que ele fez isso, Conceição?
— Ninguém sabe. Não deixou carta, nada,
ninguém sabe! Vai ver que foi por causa da doença, não é mesmo? Você também
não acha que foi por causa da doença?
— Acho — concordei, enquanto esperava que
caísse outra batata na frigideira.
Pensava agora em tia Daniela metida num
vestido preto. E de luva também preta, como não podia deixar de ser.
Para o crime não
tem explicação, mas a história ainda não está completa! Basta desvendar o
último segredo: no lugar em que se aprende, esta pista pode estar, procure
com cuidado, você não tem tempo de sentar!
Resposta: numa cadeira
na sala de aula.
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PARTE 5:
Lembrei-me então do que ele dissera,
Daniela é como um jardim selvagem. Quis perguntar o que era um jardim
selvagem. Mas tia Pombinha devia entender tanto quanto eu desses jardins.
— Ela é bonita, tia?
— Ed disse que é lindíssima. Mas não é
tão jovem assim, parece que tem a idade dele, quase quarenta anos…
— E não é bom? Isso de ser meio velha.
Balançou a cabeça com ar de quem podia
dizer ainda um montão de coisas sobre essa questão de idade. Mas preferia não
dizer.
— Hoje de manhã, quando você estava na
escola, a cozinheira deles passou por aqui, é amiga da Conceição. Contou que
ela se veste nos melhores costureiros, só usa perfume francês, toca piano…
Quando estiveram na chácara, nesse último fim de semana, ela tomou banho nua
debaixo da cascata.
— Nua?
— Nuinha. Vão morar na chácara, ele
mandou reformar tudo, diz que a casa ficou uma casa de cinema. E é isso que
me preocupa, Ducha. Que fortuna não estarão gastando nessas loucuras?
Cristo-Rei, que fortuna! Onde é que ele foi encontrar essa moça?
— Mas ele não é rico?
— Aí é que está… Ed não é tão rico quanto
se pensa.
Dei de ombros. Nunca tinha pensado antes
no assunto. Bocejei sem cerimônia. Tia Pombinha estava era com ciúme, havia
muito dessas confusões nas famílias, eu mesma já tinha lido um caso parecido
numa revista. Sabia até o nome do complexo, era um complexo de irmão com
irmã. Afundei a cabeça no travesseiro. Se queria tanto conversar, por que não
se lembrou de trazer os doces? Para comer tudo escondido, não é?
— Deixa, tia. Você não tem nada com isso.
Ela abriu nos joelhos as mãos ossudas, de
unhas onduladas, cortadas rente. Passei a língua na palma das minhas mãos
para umedecê-las. Sempre que olhava para as mãos dela, assim secas como se
tivessem lidado com giz, precisava molhar as minhas.
— Diz que anda sempre com uma luva na mão
direita, não tira nunca a luva dessa mão, nem dentro de casa.
Sentei-me na cama. Esse pedaço me
interessava.
— Usa uma luva?
— Na mão direita. Diz que tem dúzias de
luvas, cada qual de uma cor, combinando com o vestido.
— E não tira nem dentro de casa?
— Já amanhece com ela. Diz que teve um
acidente com essa mão, deve ter ficado algum defeito…
— Mas por que não quer que vejam?
— Eu é que sei? Como Ed nem tocou nisso,
fiquei sem jeito de perguntar, essas coisas não se perguntam. Casado,
imagine… Deve dar um marido exemplar, desde criança foi muito bonzinho, você
precisava ver que pérola de menino! Uma verdadeira pérola…
Tia Pombinha ficou falando algum tempo
ainda sobre a bondade do irmão, mas eu só pensava naquela nova tia que tomava
banho pelada debaixo da cascata, não tirava a luva da mão direita e era
comparada a um jardim.
Isso! Trabalho quase cumprido! Só resta colocar a
história em ordem!
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Grupo 4: LUA CRESCENTE EM AMSTERDÃ
PARTE 1:
Ele limpou nas calças os dedos sujos da
poeira de fumo que encontrou nos bolsos.
- Vamos dormir aqui. Mas vê se pára de
chorar, quer que venha o guarda?
- Quero chorar.
- Então chora.
Molemente ela se recostou numa árvore.
Enlaçou-a. Os cabelos lhe caiam em abandono pela cara, mas através dos
cabelos e da folhagem pôde ver o céu.
- Que lua magrinha. É lua minguante?
Ele avançou até o meio da alameda e expôs
a cara que se banhou na luz do céu estrelado.
- Acho que é crescente, tem o formato de
um C. Vem, querida, ali tem um banco.
- Não me chame mais de querida.
- Está bem, não chamo.
- Não somos mais queridos, não somos mais
nada.
- Está certo. Agora vem.
- O
banco é frio, quero minha cama, quero minha cama - ela soluçou e os soluços
fracamente se perderam num gemido. - Que fome. Que fome.
- Amanhã a gente...
- Quero
hoje! - ela ordenou endireitando o corpo. Voltou para ele a face endurecida.
- Se você me amasse mesmo, faria agora um ensopado com seu fígado, com
seu coração. Meus cachorros gostavam de coração de boi. Não vai me fazer um
ensopado com seu coração, não vai?
- Meu coração é de isopor e isopor não dá
nenhum ensopado. Li uma vez que - ele acrescentou. Puxou-a com brandura: -
Vem, Ana. Ali tem um banco.
- Meu coração é de verdade.
Ele riu.
- O
seu? Isopor ou acrílico, na história que li o homem achou que tinha tanto sofrimento em redor, mas tanto que não
aguentou e substituiu seu coração por um de acrílico, acho que era
acrílico.
- E daí?
Ele ficou olhando para os pés enegrecidos
da jovem, forçando as tiras das sandálias rotas. Subiu o olhar até o jeans
esfiapado, pesado de poeira.
- Daí, nada. Não deu certo, ele teria que
nascer outra coisa.
-
Você sabia contar histórias melhores.
Sob a
camiseta de algodão transparente os
pequeninos bicos dos seios pareciam friorentos. E não estava frio. Foram escurecendo durante a viagem, ele
pensou. Qual era a Ana verdadeira,
esta ou a outra? A que jurou amá-lo na terra, no mar, no braseiro, na
neve, debaixo da ponte, na cama de ouro.
Serve para as
risadas e conversas de intervalo; às vezes é frio, mas é melhor do que o meio
fio. Ele disse “Ali tem um... ”, ela respondeu “O... é frio”.
Resposta: banco do
pátio.
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PARTE 2:
Na manhã de sábado, quando cheguei para o
almoço, soube que ela passara em casa. Chutei minha pasta. As coisas que
valiam a pena aconteciam sempre quando eu estava na escola. Tia Pombinha
gaguejava, o pescoço fino cheio de manchas avermelhadas. Ficava assim que nem
peru quando tinha uma emoção forte.
— Ah, você não imagina como é
encantadora! Nunca vi uma beleza igual, que encanto de moça! Tão natural, tão
simples e ao mesmo tempo tão elegante, tão bem cuidada… Foi tão carinhosa
comigo!
Fiquei olhando para as pernas finas de
tia Pombinha com as meias murchas cor de cenoura. Bom, então tudo tinha
mudado.
— Quer dizer que a senhora gostou dela?
— Muito, fiquei mesmo cativada! E trouxe
presentes, venha ver — disse puxando-me pelo braço. — Três cortes de seda
finíssima para mim e para você uma boneca francesa… Loura, loura!
— Tenho ódio de boneca.
— Ducha! Você vai gostar dessa, é a coisa
mais linda que já se viu, olha aí, não é linda?
Fiquei olhando a boneca dentro da caixa.
Usava luvinhas de renda.
— Ela estava de luva?
— Estava. Uma luva verde, combinando com
os sapatos. No começo a gente estranha a luva só naquela mão. Mas não é mesmo
de se estranhar? Podia fazer uma plástica… Enfim, deve ter motivos. Um amor
de moça!
A conversa no mês seguinte com a
cozinheira de tio Ed me fez esquecer até os zeros sucessivos que tive em
matemática. A cozinheira viera indagar se Conceição sabia de um bom emprego,
desde a véspera estava desempregada. Tia Pombinha tinha ido ao mercado,
pudemos falar à vontade enquanto Conceição fazia o almoço.
— Seu tio é muito bom, coitado. Gosto
demais dele — começou ela enquanto beliscava um bolinho que Conceição tirara
da frigideira. — Mas não combino com dona Daniela. Fazer aquilo com o pobre
do cachorro, não me conformo.
— Que cachorro?
— O Kleber, lá da chácara. Um cachorro
tão engraçadinho, coitado. Só porque ficou doente e ela achou que ele estava
sofrendo… Tem cabimento fazer isso com um cachorro?
— Mas o que foi que ela fez?
— Deu um tiro nele.
— Um tiro?
— Bem na cabeça. Encostou o revólver na
orelha e pum! matou assim como se fosse uma brincadeira… Não era para ninguém
ver, nem o seu tio, que estava na cidade. Mas eu vi com estes olhos que a
terra há de comer, ela pegou o revólver com aquela mão enluvada e atirou no
pobrezinho, morreu ali mesmo, sem um gemido… Perguntei depois, Mas por que a
senhora fez isso? O bicho é de Deus, não se faz com um bicho de Deus uma
coisa dessas! Ela então respondeu que o Kleber estava sofrendo muito, que a
morte para ele era um descanso.
— Disse isso?
A mulher deu uma dentada no bolinho.
Ficou soprando um pouco porque estava quente como o diabo, eu mesma não
conseguia dar cabo do meu.
— Disse que a vida tinha que ser… Ah! não
lembro. Mas falou em música, que tudo tinha que ser como uma música, foi
isso. A doença sem remédio era o desafino, o melhor era acabar com o
instrumento pra não tocar mais desafinado. Até que foi muito educada comigo,
viu que eu estava nervosa e quis me explicar tudo direitinho. Mas podia ficar
me explicando até gastar todo o cuspe que eu nunca ia entender. O que entendi
muito bem foi que o Kleber estava morto. O pobre.
— Mas ela gostava dele?
— Acho que sim, estavam sempre juntos.
Quando ele ainda estava bom, ia tão alegrinho tomar banho com ela na cascata…
Só faltava falar, aquele cachorro.
— Ela perguntou por que você ia embora?
— Não. Não perguntou nada. Nunca me
tratou mal, justiça seja feita, sempre foi muito delicada com todos os
empregados. Mas não sei, eu me aborreci por demais… isso de matar o Kleber! E
montar em pelo como monta, feito índio, e tomar banho sem roupa… Uma noite a
mesa do jantar virou inteira. O doutor disse que foi ele que esbarrou no pé
da mesa, pra não cair, agarrou a toalha e veio tudo pro chão. Mas ninguém me
tira da cabeça que quem virou a mesa foi ela.
— Por quê? Por que fez isso?
— Quando fica brava… A gente tem vontade
até de entrar num buraco. O olho dela, o azul, muda de cor.
— Não tira a luva, nunca?
— Capaz!… Acho que nem o doutor viu
aquela mão. Já amanhece de luvinha. Até na cascata usa uma luva de borracha.
Conceição veio interromper a conversa
para mostrar à amiga uma bolsa que tinha comprado. Ficaram as duas
cochichando sobre homens. Quando tia Pombinha chegou, a mulher já estava se
despedindo, o que foi uma sorte.
Oooops!!! Este trecho não te pertence!
Procure os integrantes do grupo 1!
Agora sim você
está no caminho certo! Mas, espera! Com tanta conversa, chega a bater uma
AHNIMOF... hummm! Este cheiro vem da onde?
Resposta: cozinha.
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PARTE 3:
O jovem
casal parou diante do jardim e ali ficou sem palavra ou gesto, apenas olhando. A noite cálida, sem vento. Uma
menina loura surgiu na alameda de areia branco-azulada e veio
correndo. Ficou a uma certa distância dos forasteiros, observando-os com
curiosidade enquanto comia a fatia de bolo que tirou do bolso do avental.
- Vai me dar um pedaço desse bolo? -
pediu a jovem estendendo a mão. – Me dá um pedaço, hem, menininha?
- Ela não entende - ele disse.
A jovem levou a mão até a boca.
-
Comer, comer! Estou com fome – insistiu na mímica que se acelerou, exasperada.
- Quero comer!
- Aqui é a Holanda, querida. Ninguém
entende. A menina foi se afastando de
costas. E desatou a correr pelo mesmo caminho por onde viera. Ele
adiantou-se para chamar a menina e notou então que a estreita alameda se
bifurcava em dois longos braços curvos que deviam se dar as mãos lá no fim,
abarcando o pequeno jardim redondo.
- Um abraço tão apertado - ele disse. -
Acho que este é o jardim do amor. Tinha lá em casa uma estatueta com um anjo
nu fervendo de desejo apesar do mármore,
todo inclinado para a amada seminua, chegava a enlaçá-la. Mas as bocas
estavam a um milímetro do beijo, um pouco mais que ele baixasse... A aflição
que me dava aquelas bocas entreabertas, sem poder se juntar. Sem poder se
juntar.
- Mas que língua falam em Amsterdã?
-A língua de Amsterdã - ele disse
enfiando os dedos nos bolsos da jaqueta, à
procura de cigarros. - Teríamos que morrer e renascer aqui para entender o que
falam.
-
Queria tanto aquele bolo, não sente o cheiro? Queria aquele bolo, uma migalha
que fosse e ficaria mastigando, mastigando e o bolo ia se espalhar em mim, na
mão, no cabelo, não sente o cheiro?
Se em Amsterdã
não se fala português, talvez fosse possível escrever em códigos. A moça
agora não queria o bolo, ela queria um OÇNALAB.
Resposta: balanço, no
parque.
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PARTE 4:
O
vento soprou tão forte que a menina loura teve que parar porque o avental
lhe tapou a cara. Segurou o avental, arrumou a fatia de bolo dentro do guardanapo e olhou em redor. Aproximou-se do
banco vazio. Procurou por entre as árvores, voltou até o banco e alongou o
olhar meio desapontado pela alameda também deserta. Ficou esfregando as
solas dos sapatos na areia fina. Guardou o
bolo no bolso e agachou-se para ver o passarinho de penas azuis bicando com
disciplinada voracidade a borboleta que procurava se esconder debaixo
do banco de pedra.
O OTNEV está tão
forte, você deve se abrigar! Cuide do seu material, pois ele pode voar. Feche
todos os “SOCARUB”, não deixe o vento entrar!
Resposta: na porta da
sala de aula.
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PARTE 5:
- Você mentiu, Ana.
- Quando? Quando foi que menti?
Ele desviou o olhar desinteressado.
- Vem, que amanhã a gente vai ver o museu
de Rembrandt, lembra? Você disse que era o que mais queria ver no mundo.
- Tenho ódio de Rembrandt.
- Não esfregue assim a cara, Ana. Você
vai se machucar.
- Quero me machucar.
- Então se machuque. Mas vem.
- Minhas unhas eram limpas. E agora esta
crosta - gemeu ela examinando os dedos em
garra. Limpou a gota de sangue que lhe escorreu do arranhão aberto no
queixo. - Confessa que quer seguir sozinho a viagem, que quer se ver livre de
mim!
Nem
isso. Não queria nada, apenas comer. E mesmo assim, sem aquele antigo
empenho do começo. Gostaria também de sair dançando, a música leve, ele leve
e dançando por entre as árvores até se desintegrar numa pirueta.
-
Você disse que seria a menina mais feliz do mundo quando pisasse comigo
em Amsterdã.
- Tenho ódio de Amsterdã. Eu era tão
perfumada, tão limpa. Me sujei com você.
- Nos sujamos quando acabou o amor. Agora
vem, vamos dormir naquele banco. Vem, Ana.
Ela puxou-lhe a barba.
- Quando foi que fiquei assim tão imunda,
fala!
- Mas eu já disse, quando deixou de me
amar.
- Mas você também - ela soqueou-lhe
fracamente o peito. - Nega que você também...
- Sim,
nós dois. A queda dos anjos, não tem um livro? Ah, que diferença faz.
Vem.
- O banco é frio.
Quando
ele a tomou pela cintura, chegou a se assustar um pouco: era como se
estivesse carregando uma criança, precisamente aquela menininha que fugira há
pouco com seu pedaço de bolo. Quis se comover. E descobriu que se inquietara mais com o susto da menina do que
com o corpo que agora carregava como se carrega uma empoeirada boneca
de vitrina, sem saber o quefazer com ela.
Depositou-a no banco e sentou-se ao lado. Contudo, era lua crescente.
E estavam em Amsterdã. Abriu os braços. Tão oco. Leve. Poderia sair voando
pelo jardim, pela cidade. Só o coração pesando - não era estranho? De onde vinha esse peso? Das lembranças? Pior do
que a ausência do amor, a memória.
- E
onde estão os outros? Para a viagem? Você não disse que era aqui o reino deles? - perguntou ela dobrando o corpo
para a frente até encostar o queixo nos joelhos. - Tudo invenção. Isso
de Marte ser pedregoso, deserto. Uma vez fui lá, queria tanto voltar. Detesto
este jardim.
- Perdemos o outro.
- Que outro?
A voz dela também mudara: era como se
viesse do fundo de uma caverna fria. Sem saída. Se ao menos pudesse
transmitir-lhe esse distanciamento. Nem piedade nem rancor.
Isso! Trabalho quase cumprido! Só resta colocar a
história em ordem!
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Grupo 5: NATAL NA BARCA
PARTE 1:
Levantou a cabeça com energia. O queixo
agudo era altivo, mas o olhar tinha a expressão doce.
— É o único. O meu primeiro morreu o ano
passado. Subiu no muro, estava brincando de mágico quando de repente avisou,
vou voar! E atirou-se. A queda não foi grande, o muro não era alto, mas caiu
de tal jeito... Tinha pouco mais de quatro anos.
Joguei o cigarro na direção do rio e o toco
bateu na grade, voltou e veio rolando aceso pelo chão. Alcancei-o com a ponta
do sapato e fiquei a esfregá-lo devagar. Era preciso desviar o assunto para
aquele filho que estava ali, doente, embora. Mas vivo.
— E esse? Que idade tem?
— Vai completar um ano. — E, noutro tom,
inclinando a cabeça para o ombro: — Era um menino tão alegre. Tinha
verdadeira mania com mágicas. Claro que não saía nada, mas era muito
engraçado... A última mágica que fez foi perfeita, vou voar! disse abrindo os
braços. E voou.
Levantei-me. Eu queria ficar só naquela
noite, sem lembranças, sem piedade. Mas os laços (os tais laços humanos) já
ameaçavam me envolver. Conseguira evitá-los até aquele instante. E agora não
tinha forças para rompê-los.
— Seu marido está à sua espera?
Gostava de fazer
mágicas, o menino! No mínimo gostava muito do Super-homem e outros heróis dos
quadrinhos!
Resposta: na biblioteca,
nos gibis.
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PARTE 2:
– Mas este cemitério não acaba mais,
já andamos quilômetros! – Olhou para trás. – Nunca andei tanto, Ricardo, vou
ficar exausta.
- A boa vida te deixou preguiçosa. Que
feio – lamentou ele, impelindo-a para frente. – Dobrando esta alameda, fica o
jazigo da minha gente, é de lá que se vê o pôr do sol. – E, tomando-a pela
cintura: – Sabe, Raquel, andei muitas vezes por aqui de mãos dadas com minha
prima. Tínhamos então doze anos. Todos os domingos minha mãe vinha trazer
flores e arrumar nossa capelinha onde já estava enterrado meu pai. Eu e minha
priminha vínhamos com ela e ficávamos por aí, de mãos dadas, fazendo tantos
planos. Agora as duas estão mortas.
- Sua prima também?
- Também. Morreu quando completou
quinze anos. Não era propriamente bonita, mas tinha uns olhos…Eram assim
verdes como os seus, parecidos com os seus. Extraordinário, Raquel,
extraordinário como vocês duas…Penso agora que toda a beleza dela residia
apenas nos olhos, assim meio oblíquos, como os seus.
- Vocês se amaram?
- Ela me amou. Foi a única criatura
que…- Fez um gesto. – Enfim não tem importância.
Raquel tirou-lhe o cigarro, tragou e
depois devolveu-o.
- Eu gostei de você, Ricardo.
- E eu te amei. E te amo ainda.
Percebe agora a diferença?
Um pássaro rompeu o cipreste e soltou
um grito. Ela estremeceu.
- Esfriou, não? Vamos embora.
- Já chegamos, meu anjo. Aqui estão
meus mortos.
Pararam diante de uma capelinha
coberta de alto a baixo por uma trepadeira selvagem, que a envolvia num
furioso abraço de cipós e folhas. A estreita porta rangeu quando ele a abriu
de par em par. A luz invadiu um cubículo de paredes enegrecidas, cheias de
estrias de antigas goteiras. No centro do cubículo, um altar meio
desmantelado, coberto por uma toalha que adquirira a cor do tempo. Dois vasos
de desbotada opalina ladeavam um tosco crucifixo de madeira. Entre os braços da
cruz, uma aranha tecera dois triângulos de teias já rompidas, pendendo como
farrapos de um manto que alguém colocara sobre os ombros do Cristo. Na parede
lateral, à direita da porta, uma portinhola de ferro dando acesso para uma
escada de pedra, descendo em caracol para a catacumba.
Ela entrou na ponta dos pés, evitando
roçar mesmo de leve naqueles restos da capelinha.
- Que triste é isto, Ricardo. Nunca
mais você esteve aqui?
Ele tocou na face da imagem recoberta
de poeira. Sorriu melancólico.
- Sei que você gostaria de encontrar
tudo limpinho, flores nos vasos, velas, sinais da minha dedicação, certo?
- Mas já disse que o que eu mais amo
neste cemitério é precisamente esse abandono, esta solidão. As pontes com o
outro mundo foram cortadas e aqui a morte se isolou total. Absoluta.
Ela adiantou-se e espiou através das
enferrujadas barras de ferro da portinhola. Na semi-obscuridade do subsolo,
os gavetões se estendiam ao longo das quatro paredes que formavam um estreito
retângulo cinzento.
- E lá embaixo?
- Pois lá estão as gavetas. E, nas
gavetas, minhas raízes. Pó, meu anjo, pó- murmurou ele. Abriu a portinhola e
desceu a escada. Aproximou-se de uma gaveta no centro da parede, segurando
firme na alça de bronze, como se fosse puxá-la. – A cômoda de pedra. Não é
grandiosa?
Detendo-se no topo da escada, ela
inclinou-se mais para ver melhor.
- Todas estas gavetas estão cheias?
- Cheias?…- Sorriu.- Só as que tem o
retrato e a inscrição, está vendo? Nesta está o retrato da minha mãe, aqui
ficou minha mãe- prosseguiu ele, tocando com as pontas dos dedos num medalhão
esmaltado, embutido no centro da gaveta.
Ela cruzou os braços. Falou baixinho,
um ligeiro tremor na voz.
- Vamos, Ricardo, vamos.
- Você está com medo?
- Claro que não, estou é com frio.
Suba e vamos embora, estou com frio!
Ele não respondeu. Adiantara-se até um
dos gavetões na parede oposta e acendeu um fósforo. Inclinou-se para o
medalhão frouxamente iluminado:
- A priminha Maria Emília. Lembro-me
até do dia em que tirou esse retrato. Foi umas duas semanas antes de morrer…
Prendeu os cabelos com uma fita azul e vejo-a se exibir, estou bonita? Estou
bonita?…- Falava agora consigo mesmo, doce e gravemente.- Não, não é que
fosse bonita, mas os olhos…Venha ver, Raquel, é impressionante como tinha
olhos iguais aos seus.
Ela desceu a escada, encolhendo-se
para não esbarrar em nada.
- Que frio que faz aqui. E que escuro,
não estou enxergando…
Acendendo outro fósforo, ele
ofereceu-o à companheira.
- Pegue, dá para ver muito bem…-
Afastou-se para o lado.- Repare nos olhos.
- Mas estão tão desbotados, mal se vê que é
uma moça…- Antes da chama se apagar, aproximou-a da inscrição feita na pedra.
Leu em voz alta, lentamente.- Maria Emília, nascida em vinte de maio de mil
oitocentos e falecida…- Deixou cair o palito e ficou um instante imóvel – Mas
esta não podia ser sua namorada, morreu há mais de cem anos! Seu menti…
Oooops!!! Este trecho não te pertence!
Procure os integrantes do grupo 2!
Agora sim você está
no caminho certo! Mas, atenção: o mesmo pássaro que assustou Raquel, também
bicou toda a verdura. Talvez fosse necessário engenhocar um espantalho.
Resposta: na horta.
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PARTE 3:
Não quero nem devo lembrar aqui por que me
encontrava naquela barca. Só sei que em redor tudo era silêncio e treva. E
que me sentia bem naquela solidão. Na embarcação desconfortável, tosca,
apenas quatro passageiros. Uma lanterna nos iluminava com sua luz vacilante:
um velho, uma mulher com uma criança e eu.
O velho, um bêbado esfarrapado, deitara-se
de comprido no banco, dirigira palavras amenas a um vizinho invisível e agora
dormia. A mulher estava sentada entre nós, apertando nos braços a criança
enrolada em panos. Era uma mulher jovem e pálida. O longo manto escuro que
lhe cobria a cabeça dava-lhe o aspecto de uma figura antiga.
Pensei em falar-lhe assim que entrei na
barca. Mas já devíamos estar quase no fim da viagem e até aquele instante não
me ocorrera dizer-lhe qualquer palavra. Nem combinava mesmo com uma barca tão
despojada, tão sem artifícios, a ociosidade de um diálogo. Estávamos sós. E o
melhor ainda era não fazer nada, não dizer nada, apenas olhar o sulco negro
que a embarcação ia fazendo no rio.
Debrucei-me na grade de madeira carcomida.
Acendi um cigarro. Ali estávamos os quatro, silenciosos como mortos num
antigo barco de mortos deslizando na escuridão. Contudo, estávamos vivos. E
era Natal.
A caixa de fósforos escapou-me das mãos e
quase resvalou para o rio. Agachei-me para apanhá-la. Sentindo então alguns
respingos no rosto, inclinei-me mais até mergulhar as pontas dos dedos na
água.
— Tão gelada — estranhei, enxugando a mão.
— Mas de manhã é quente.
Voltei-me para a mulher que embalava a
criança e me observava com um meio sorriso. Sentei-me no banco ao seu lado.
Tinha belos olhos claros, extraordinariamente brilhantes. Reparei que suas
roupas (pobres roupas puídas) tinham muito caráter, revestidas de uma certa
dignidade.
— De manhã esse rio é quente — insistiu
ela, me encarando.
— Quente?
— Quente e verde, tão verde que a primeira
vez que lavei nele uma peça de roupa pensei que a roupa fosse sair
esverdeada. É a primeira vez que vem por estas bandas?
Desviei o olhar para o chão de largas
tábuas gastas. E respondi com uma outra pergunta:
— Mas a senhora mora aqui perto?
— Em Lucena. Já tomei esta barca não sei
quantas vezes, mas não esperava que justamente hoje...
A criança agitou-se, choramingando. A
mulher apertou-a mais contra o peito. Cobriu-lhe a cabeça com o xale e pôs-se
a niná-la com um brando movimento de cadeira de balanço. Suas mãos
destacavam-se exaltadas sobre o xale preto, mas o rosto era sereno.
— Seu filho?
— É. Está doente, vou ao especialista, o
farmacêutico de Lucena achou que eu devia ver um médico hoje mesmo. Ainda
ontem ele estava bem, mas piorou de repente. Uma febre, só febre... Mas Deus
não vai me abandonar.
— É o caçula?
Em épocas de natal
ou outras datas comemorativas estou todo enfeitado. Também sirvo para recados
importantes e não passo despercebido! Todos me olham, sou exibido!
Resposta: no mural.
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PARTE 4:
— Acordou o dorminhoco! E olha aí, deve
estar agora sem nenhuma febre.
— Acordou?!
Ela sorriu:
— Veja...
Inclinei-me. A criança abrira os olhos —
aqueles olhos que eu vira cerrados tão definitivamente. E bocejava,
esfregando a mãozinha na face corada. Fiquei olhando sem conseguir falar.
— Então, bom Natal! — disse ela, enfiando a
sacola no braço.
Sob o manto preto, de pontas cruzadas e
atiradas para trás, seu rosto resplandecia. Apertei-lhe a mão vigorosa e
acompanhei-a com o olhar até que ela desapareceu na noite.
Conduzido pelo bilheteiro, o velho passou
por mim retomando seu afetuoso diálogo com o vizinho invisível. Saí por
último da barca. Duas vezes voltei-me ainda para ver o rio. E pude imaginá-lo
como seria de manhã cedo: verde e quente. Verde e quente.
Ao desvendar o
enigma, terá em mãos o último trecho do conto. Se liga no alfabeto! Vá em
frente: 13+5+19+1à 4+15 à 16+18+15+6+5+19+19+15+18.
Resposta: mesa do
professor, na sala de aula.
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PARTE 5:
— Meu marido me abandonou.
Sentei-me e tive vontade de rir. Incrível.
Fora uma loucura fazer a primeira pergunta porque agora não podia mais parar,
ah! aquele sistema dos vasos comunicantes.
— Há muito tempo? Que seu marido...
— Faz uns seis meses. Vivíamos tão bem, mas
tão bem. Foi quando ele encontrou por acaso essa antiga namorada, me falou
nela fazendo uma brincadeira, a Bila enfeiou, sabe que de nós dois fui eu que
acabei ficando mais bonito? Não tocou mais no assunto. Uma manhã ele se
levantou como todas as manhãs, tomou café, leu o jornal, brincou com o menino
e foi trabalhar. Antes de sair ainda fez assim com a mão, eu estava na
cozinha lavando a louça e ele me deu um adeus através da tela de arame da
porta, me lembro até que eu quis abrir a porta, não gosto de ver ninguém
falar comigo com aquela tela no meio... Mas eu estava com a mão molhada.
Recebi a carta de tardinha, ele mandou uma carta. Fui morar com minha mãe
numa casa que alugamos perto da minha escolinha. Sou professora.
Olhei as nuvens tumultuadas que corriam na
mesma direção do rio. Incrível. Ia contando as sucessivas desgraças com
tamanha calma, num tom de quem relata fatos sem ter realmente participado
deles. Como se não bastasse a pobreza que espiava pelos remendos da sua
roupa, perdera o filhinho, o marido, via pairar uma sombra sobre o segundo
filho que ninava nos braços. E ali estava sem a menor revolta, confiante.
Apatia? Não, não podiam ser de uma apática aqueles olhos vivíssimos, aquelas
mãos enérgicas. Inconsciência? Uma certa irritação me fez andar.
— A senhora é conformada.
— Tenho fé, dona. Deus nunca me abandonou.
— Deus — repeti vagamente.
— A senhora não acredita em Deus?
— Acredito — murmurei. E ao ouvir o som
débil da minha afirmativa, sem saber por quê, perturbei-me. Agora entendia.
Aí estava o segredo daquela segurança, daquela calma. Era a tal fé que removia
montanhas...
Ela mudou a posição da criança, passando-a
do ombro direito para o esquerdo. E começou com voz quente de paixão:
Isso! Trabalho quase cumprido! Só resta colocar a
história em ordem!
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